UM TÓPICO REALMENTE ALICIANTE
Aqui vai outra matéria que escrevi para a saudosa revista Metal Massacre em 2001, sem atualizações porém "remixada" e “remasterizada”.
ALICE COOPER
por Ayrton Mugnaini Jr.
“O telefone está tocando/você me pegou na corrida...” É isso mesmo, sou fã de Alice desde aquele dia de 1972 em que um amigo lá em Soroqueibol me apresentou o LP Killer, que acabava de ser lançado no Brasil. Hoje, quase 30 anos depois, reouço a edição em CD e concluo que vale a pena continuar adolescente com discos tão bons quanto este. Mas parte de mim insiste em crescer – calma, gurias, refiro-me desta vez a meu intelecto; após décadas de trabalho como crítico, pesquisador musical e compositor, continuo gostando de boa parte da obra de tia Alice e seus sobrinhos; discos como Killer e School’s Out me soam hoje ainda melhores, em todos os sentidos (só parei de ouvir os LPs quando adquiri as primeiras edições em CD).
"SOU ASSASSINO, SOU PALHAÇO..."
Talvez nenhum roqueiro de
qualquer época tenha superado Alice Cooper na musicalização de temas mórbidos e
negativos como morte, violência e decadência física, mental e espiritual. Sim,
antes de Alice tivemos grupos que se deram bem abordando tais temáticas, como
os Doors, os Stones, Lou Reed e o Velvet Underground, os Fugs, Iggy Pop com ou
sem os Stooges; na mesma época e depois, surgiram os New York Dolls, o Black
Sabbath, o Iron Maiden e o Marilyn Manson, sem falar no Slayer e em todo o
death-metal. Mas Alice ainda é o campeão, por saber abordar tais assuntos com
profundidade e, ao mesmo tempo, bom humor, já que o bom rock and roll, por
definição, quase nunca se leva a sério; sem falar na qualidade musical de boa
parte de sua obra – discos como Billion
Dollar Babies e os citados Killer
e School’s Out passaram no teste do
tempo, apreciáveis e apreciados até hoje mesmo por quem não entende patavina de
inglês.
“Minha banda é uma adaga no
coração da ‘love generation’”, comentou Alice nos anos 1970. De fato, Alice soube
e ainda sabe dar à juventude o que ela quer; afinal, quase todo adolescente
torce para o Lobo Mau comer os Três Porquinhos – ou, já que Alice gravou na
Warner, torca para que o Coiote pegue o Bip-Bip. Bem resumiu Alice: “Os EUA são só
sexo, morte e dinheiro”. Alice é trilha sonora ideal para quem gosta dos Três
Patetas, Zé do Caixão, filmes B em geral, vaudeville/burlesco baixaria, ou seja,
grand-guignol – ou, em bom português, “trash”, por sinal
título de um dos discos de Alice. Enfim, o estilo de Alice Cooper foi bem
definido pelo saudoso Ezequiel Neves como “teatrinho infantil desbundado”.
FUI APANHADO NUM
SONHO
O primeiro grande
sucesso de Alice, “I’m Eighteen”, foi descrito como o equivalente ianque de “My
Generation” do Who: “Sou menino e sou homem/tenho 18 anos e não sei o que
quero/preciso sumir daqui”. Salvo engano, Alice foi o primeiro artista a
reverter o rock aos adolescentes que eram seu maior público nos anos 1950. É que
nos anos 1960 o rock havia se tornado “adulto” demais, falando de paz e amor,
problemas sociais, a decadência do Império Britânico, casamentos e divórcios,
encrencas com polícia, ladrões e traficantes, pactos com anjos e demônios,
incesto, homossexualismo e outras heranças da literatura “cabeça” de beatniks e
existencialistas em geral; até uma máquina de fliperama era pretexto para uma
reflexão sobre religiões e lideranças. Foi Alice quem voltou a cantar sobre as
crises da adolescência, inclusive sem a pentelhação da censura que vigorara nos
anos 1950 e início dos 1960 – e sem preocupações com bobagens como bom gosto
ou, como se diz hoje, ser politicamente correto.
Por sinal, o único
tabu que Alice Cooper não conseguiu emplacar nos EUA foi a androginia. Afinal,
tratava-se de um país cuja maioria era de machões ou mulheronas sem meio termo;
quando os homens deixavam crescer o cabelo, precisavam contrabalançar com
barbas e bigodes para demonstrar que continuavam machos. Bem resumiu o citado
Wayne County (que nos anos 1980 mudou de sexo e de nome, Jayne County): “Alice
Cooper precisou parar de usar sapatos de mulher com fivela atrás e cílios
postiços e vestidos e se concentrar mais no horror, porque o povo nos EUA
conseguia entender horror e sangue e bebês mortos, mas não conseguia entender
sexualidade masculina/feminina, androginia, ou... como diziam os rapazinhos estadunidenses,
música de viado.”
Talvez por influência
do existencialismo à francesa em todo o mundo desde os anos 1940/1950,
androginia nunca foi novidade no rock and roll, de Little Richard a Prince,
passando por Edgar Winter, David Bowie, Marc Bolan, os Smiths e o Suede. Embora
não tenha conseguido vender androginia para os ianques, Alice conseguiu ser o
primeiro estadunidense a se dar bem com o glam-rock simples e dançante dos
bretões Bowie, T. Rex, Slade e Gary Glitter; Lou Reed e o Kiss foram apenas
dois conterrâneos que pegaram carona na fama de Alice e se deram bem.
COMO VOCÊ VAI ME VER
AGORA
Ao se tornar artista
solo em 1974, Alice Cooper se revelou, tal como os Bee Gees ou o Pink Floyd,
mestre em baladas que apenas parecem melosas e românticas: “Only Women Bleed”,
“I Never Cry”, “You And Me”, “How You Gonna See Me Now”... O jornalista Jeff
Pike reparou que a “balada heavy” é mais uma tradição que se deve a Alice
(talvez os únicos antecedentes sejam “Changes” do Sabbath e, forçando um pouco,
“Child In Time” e “Mistreated” do Deep Purple); após o sucesso de “Only Women
Bleed”, vieram “Beth” do Kiss, “Waiting For A Girl Like You” do Foreigner,
“I’ll Be There For You” do Bon Jovi, “Patience” do Guns’n’Roses...
Por sinal, Alice não
foi exceção à “teoria do vácuo” no rock. Ao despedir seu grupo e trocar o rocão
pelas baladonas (embora mantendo a temática das letras), seu lugar foi tomado
por artistas como os já citados Wayne County e Marilyn Manson, os básicos Ramones,
Twisted Sister, Iron Maiden, o Aerosmith (que, por sinal, participa do disco Trash de Alice).
ELA PERGUNTOU “POR
QUE O CANTOR SE CHAMA ALICE?” EU DISSE “VOCÊ NÃO IA ENTENDER...”
O início da história
de Alice (o grupo) não é muito diferente de tantos grupos de garagem que
surgiram nos EUA nos anos 60.
Os personagens desta
história são Vincent Furnier (nascido a 4/2/1948 em Detroit e criado em
Phoenix, no Arizona), os guitarristas Michael Bruce (16/3/1948) e Glen Buxton
(10/11/1947), o contrabaixista Dennis Dunaway (9/12/1948) e o baterista Neil
Smith (23/9/1947). Todos moram em Phoenix e formam seus grupinhos adolescentes
com amigos e colegas de escola, chegando a gravar compactos independentes aqui
e ali (tal como Michael Bruce e os Wallpapers). Em 1965 estes cinco
companheiros se unem num mesmo grupo, chamado Earwigs. Em 1966 mudam o nome
para Spiders, e no ano seguinte gravam um compacto, “Don’t Blow Your Mind”,
grande sucesso em Phoenix, mas que com o tempo se torna mosca branca de olhos azuis,
ou seja, mais raro que a raridade.
Por esta época,
Vincent se torna “eighteen”, e participa de uma sessão espírita, onde recebe
uma informação muito interessante: ele é nada menos que a reencarnação de uma
feiticeira do século 17, chamada, é isso mesmo, Alice Cooper. Este nome soa bem
mais chamativo e roqueiro que Vincent Furnier, e nosso amigo passa a atender
por ele.
De ano em ano as
coisas vão acontecendo. Em 1968 os Spiders resolvem tentar a sorte em
Hollywood, e mudam mais uma vez o nome; agora atendem por The Nazz e gravam
mais um disco, “Lay Down And Die, Goodbye” (uma granada punk de dois minutos
que se tornará uma viagem de sete minutos e meio no segundo LP do grupo, mas já
chegaremos lá).
Único problema: outro
grupo chamado Nazz (igualmente inspirado em “The Nazz Are Blue” dos Yardbirds),
liderado por Todd Rundgren, torna-se sucesso nacional com “Hello, It’s Me”.
Então o grupo muda de nome ainda uma vez, para Alice Cooper – antecipando a
mania dos grupos brasileiros dos anos 80/90 de usarem nome feminino (Garotas
Que Erraram, Viúva Velvet, Velhas Virgens e por aí vai).
Alice Cooper, o
grupo, vai fazendo shows pela Califórnia. Diz a lenda que eles conseguem
esvaziar a casa noturna Cheetah, o que chama a atenção de Shep Gordon, empresário
de Frank Zappa, que acha isto muito interessante e resolve chamar o grupo para
aumentar sua coleção de artistas bizarros para dois selos que a Warner Bros.
lhe confiara para dirigir, Straight e Bizarre, turma esta que já incluía
Captain Beefheart, Wild Man Fischer e Girls Together Outrageously (um grupo
formado por groupies). Assim Alice lembra como foi a gravação do primeiro LP, Pretties for You, em novembro de 1968:
“Por uma semana inteira ficamos no estúdio tocando cada música cinco ou seis vezes
com Herb Cohen (gerente comercial de Zappa) e Frank Zappa lidando com os níveis
de gravação na sala de controle. A gente pensou que estava só ensaiando, se
esquentando pra gravar as bases e experimentar, quando Zappa saiu do aquário e
disse “OK, o LP de vocês estará pronto na quinta-feira. Eu disse “Tem alguns
erros nesse material. A gente nem estava pronto pra gravar”, mas ele só me deu
um tapinha no ombro e disse “Não se preocupe. Não se preocupe. A gente vai dar
um jeito em tudo na mixagem.” A gente só foi ver ou ouvir o disco seis meses
depois.”
Pretties for You faz sucesso pequeno porém
animador para um grupo ainda desconhecido e tão anticomercial. Alice: “Fizemos
um show em Glenville, Michigan. Chegamos ao motel, lá não tinha televisão, e no
salão só cabiam duzentas pessoas. Eu achei que a noite ia ser uma bela roubada.
Então subimos ao palco, e o lugar estava cheio – e comecei a cantar, e TODOS OS
GAROTOS NA PRIMEIRA FILA sabiam todas as letras de Pretties For You. Dá pra imaginar qual foi a sensação? EU nem sabia
todas as letras do disco, e estes moleques daquela cidadezinha conheciam cada
música.”
A crítica não gosta
dos dois primeiros discos de Alice, considerando-os garagentos demais, mas os
malucos adoram. E a gravadora percebe que falta apenas um bom produtor para
desenvolver o potencial do grupo. Entra em cena o canadense Bob Ezrin, que faz
de Love It To Death a primeira
obra-prima de Alice, incluindo o primeiro grande sucesso nacional, “I’m
Eighteen”. A parceria rende vários LPs clássicos do rock, incluindo discos-solo
de Alice como Welcome To My Nightmare
e Dada.
A imagem do grupo
também ajuda, e muito, com Alice satirizando o sadomasoquismo, fingindo matar
bonecas e ser guilhotinado em pleno palco, além de repartir o show com uma
cobra. “Há muitos anos, quando estive na Jamaica, eu vi uma dança de cobra.
Todo mundo na platéia ficou hipnotizado. Quando saíram do show, cada um reagiu
de um jeito diferente. Achei que foi a coisa mais engraçada que eu já tinha
visto. Uma mulher achou o máximo em sexualidade. Um cara quase morreu de susto,
porque tinha medo de cobras. Mas todo mundo REAGIU. Dizem que não dá mais para
fazer os jovens reagirem. Mas com a cobra eles REAGEM. Eles riem, se arrepiam
de medo, gritam de alegria.”
Não demoram a surgir
lendas, como Alice (ou Zappa? Já ouvi estas duas versões) comendo excrementos
ou bebendo baldes de cuspe de membros da platéia em pleno palco. E o mito de
que Alice mata galinhas nos shows tem origem num fato real: “A gente estava em
Londres, ou no Canadá, estávamos tocando com Zappa, e alguém jogou uma galinha
no palco. A gente estava tocando do lado de fora, e tinha uma varanda. E eu
peguei a galinha, e eu acreditava de todo o coração que galinha voava. Então
joguei a galinha para cima, e ela bateu no topo da varanda, e ela caiu na
platéia, e foi rasgada em pedacinhos. Depois eu fiquei sabendo que eu tinha
aberto o pescoço dela com uma dentada e sugado-lhe o sangue. Se as pessoas
gostam e querem acreditar...” Poucos reparam, por exemplo, que, após um show
cheio de sangue e violência, Alice impede que outro membro da banda pise numa
barata: “NÃO! É uma coisa viva, não faz mal pra nenhum de nós, não há porque
matá-la.” Pois é, imagem é tudo...
NA TERRA DE TIA ALICE
Nos anos 70, antes da
grande explosão do rock no Brasil (imposta pelas gravadoras multinacionais ou
não, isto é outra história), conta-se nos dedos de meia mão os artistas
roqueiros ou aparentados que vieram no auge fazer shows em nosso país: Genesis,
James Brown, Jackson 5. Sendo o Brasil derrotista por excelência, de repente
baixou-se o decreto não-oficial de que, tendo vindo cantar aqui, Alice não
prestava mais. Então os discos pararam de vender, Alice virou “várzea” e só foi
reabilitado nos anos 1980.
Steve Gaines,
jornalista que ajudou Alice a escrever sua autobiografia, Me, Alice, conta: “O manuscrito original começava com uma cena no
Brasil onde dezenas de milhares de fãs num concerto foram mesmo esmagadas
contra o palco e Alice assistiu horrorizado. Eles me fizeram substituir esta
parte com uma história boba de Alice brincando de detetive” Muito mais
interessante é quando Alice fica sabendo que é chamado de “Tia Alice” no
Brasil: “Tia Alice” “Aunt Alice! It’s very funny!”
ALICE DE CORAÇÃO DURO
O dinheiro sempre foi
o grande teste para as pessoas, e Alice acaba não resistindo. Logo o grupo
começa a reclamar de que Alice prefere posar para revistas ao lado de atores,
atrizes e modelos que seus companheiros, além de “estragar” as melodias dos
parceiros com letras “doidonas”. “Eu componho músicas para o primeiro lugar nas
paradas, “Never Been Sold Before”, “School’s Out”, “I’m Eighteen””, diz Michael
Bruce, “daí Alice põe as letras doidas dele e as músicas não são mais para o
primeiro lugar, são apenas músicas que servem para a imagem de palco que
construímos.”
O próprio Alice,
mestre em brincar de ser sério e levar a sério a brincadeira, diverte-se ao
falar de suas letras. Na época do disco Muscle
Of Love, ele comenta com um repórter sobre os primeiros versos que acaba de
escrever para a faixa-título, a lápis numa folha de caderno: “Joey levou-a para
a matinê/disse ‘Deus, ela não parava...’” Alice diz ao repórter: “Você vê como
minhas letras são sutis? Está impressionado com a finesse?” O repórter pergunta
quanto tempo Alice levou para escrever a música. “A MÚSICA? Eu escrevi as
letras do disco inteiro em um dia, assistindo os programas de variedades na
televisão. Quero dizer, do que é que se precisa para escrever este tipo de
coisa, afinal? O resto da banda me dá os instrumentais, e eu escrevo as letras
em algumas horas. Não é exatamente literatura imortal.” E, ao que consta, Alice
caprichou nas letras de Muscle Of Love
por mais tempo que as do disco anterior, Billion
Dollar Babies.
Mais trágico é o
destino do guitarrista Glen Buxton, que no início era o melhor músico do grupo,
o único que sabia ler partituras e que inclusive ensinou Dennis a tocar
contrabaixo. Uma mistura de fama e dinheiro com bebida alcoólica foi fatal,
causando-lhe decadência física quase completa, inclusive perdendo quase todo o
pâncreas. Não é à toa que desde 1971 ele precisa ser suplementado em discos e
shows (por amigos que quase sempre permanecem anônimos como Rick Derringer – na
faixa “Under My Wheels” – , Dick Wagner e Steve Hunter) e nem toca em Muscle Of Love. Se Alice queria ser um
novo Stones, Glen acabou sendo seu Brian Jones. Após o fim da banda original,
Buxton forma a banda Virgin em 1985 doze anos depois participa de um disco, Antbee, reunindo todos os velhos
companheiros, exceto Alice. Glen acaba falecendo de enfisema e pneumonia em 19
de outubro de 1997, pouco antes de emplacar 50 anos.
Por sinal, em 1977
Michael Bruce, Dennis Dunaway e Neal Smith formaram a banda Billion Dollar
Babies, gravando um LP, Battle Axe;
eles podem continuar bons compositores, mas o carisma de Alice faz falta.
E Alice segue em
frente. Seu único grande problema é o alcoolismo, chegando a ser grande
acionista da cerveja Budweiser; no fim dos anos 70 ele se livrou do vício,
inclusive exorcizando-o em seu disco From
The Inside (com muitas letras escritas por Bernie Taupin, o letrista de
Elton John; anos depois ele gravará um bom disco new-wavesco, Flush The Fashion, ao lado do mais
ilustre guitarrista de Elton, Davey Johnstone). No fim dos anos 70 alguns
críticos o chamam de “piada velha” e outros o acusam de tentar seguir novas
modas. Mas pelo menos algumas de suas músicas têm traços do velho brilho:
“Gail”, “Pain”, “Aspirin Damage”. E Alice virou uma espécie de Vincent Price
(que, aliás, participa de Welcome To My
Nightmare do xará) do rock, aparecendo em vários filmes – Wayne’s World, A Hora Do Pesadelo Parte 6 (como o pai de Freddie Kruger) e
gravando um dueto com Rob Zombie (do grupo White Zombie) para um disco tributo
à série Arquivo X. Além disso, Alice
mantém um restaurante próprio na cidade em que se criou, Phoenix, no Arizona,
Sim, Arlo Guthrie, existe um verdadeiro “Alice’s Restaurant”.
CURIOSIDADES
* Alice, famoso como o maior
pseudo-psicopata do rock, encontrou-se com o maior psicopata de verdade, Syd
Barrett, do Pink Floyd. Ou melhor, quem conheceu Syd foi Glen Buxton, quando
foram vizinhos em Venice, na Califórnia. Assim Glen lembrou o episódio: “Eu não
me lembro dele dizendo duas palavras. Não que ele fosse esnobe: ele era uma
pessoa muito estranha. Ele nunca falava, mas a gente sentava para jantar e de
repente eu pegava o açúcar e passava pra ele e ele dizia “Sim, obrigado”. Era
como se eu o ouvisse pedindo “Passe o açúcar” – era como telepatia.”
* Um bom livro sobre Alice é Billion Dollar Babe de Bob Greene,
escrito como um documentário da gravação do disco Muscle Of Love e os shows da mesma época.
* Alice Cooper ainda não cantou um tema de
filme de James Bond, mas bem que tentou. No final de Com 007 Viva E Deixe Morrer vê-se o lembrete de que o próximo seria
Man With The Golden Gun. Então Alice
não perdeu tempo em compor uma música com esse nome, gravada no disco Muscle Of Love, com canja de Liza
Minnelli e tudo. “Já pensou? O filme ainda em produção e já tem uma música com
o mesmo título tocando em um milhão de lares”, divertiu-se Alice. “Eles vão ter
de usar esta música como tema do filme.”
* Quem cuidava das famosas cobras de Alice era um
roadie inglês, Andy Mills. Quando Alice veio ao Brasil, Andy gostou tanto que
acabou ficando. Inclusive, ficou amigo de Rita Lee, a ponto de ter com ela um
romance rápido e colaborar em seus primeiros discos-solo pós-Mutantes, Atrás Do Porto Tem Uma Cidade e Fruto Proibido. Dizem que é esta a razão
de Arnaldo Baptista, ex-marido de Rita, ter cantado “não gosto do Alice
Cooper/onde é que está meu rock and roll?”
* Alice Cooper deve ter frequentado, junto
com John Lennon e Caetano Veloso, o mesmo Instituto Universal de Auto-Referência.
Ainda em sua fase garageira psicodélica, ele homenageou nomes antigos de seu
grupo nas faixas “Return Of The Spiders” e “Earwigs To Eternity”, e cita a si
mesmo em “Be My Lover” (embora esta seja composição do guitarrista Michael
Bruce) e “Hard Hearted Alice”.
* Alice daria um símbolo da Warner Bros.
ainda mais engraçado que o Pernalonga – uma de suas gravações se chama
justamente “Luney Tune”, alusão às “Looney Tunes” dos desenhos da Warner.
* No rock, assim como na música popular em
geral, originalidade não é sinônimo de qualidade. “Alice caga em cima de tudo,
plagia tudo”, resumiu a primeira edição brasileira da publicação Rolling Stone. Alguns exemplos: “Billion
Dollar Babies” lembra “Tell Me To My Face” dos Hollies, “Be My Lover” aproveita
o riff de “Sweet Jane” e “Baba O’Riley”, “Titanic Overture” é uma esculhambação
com “Going Out Of My Head” de Teddy Randazzo, a capa de School’s Out é “baseada” em Thinks:
School Stinks, de 1970, do grupo inglês Hotlegs (que logo mudaria para 10
CC) “Elected” recicla o riff de “Dolly Dagger” de Jimi Hendrix, o arranjo de
partes de Quadrophenia do Who e a
melodia inicial de “Reflected” do... próprio Alice, faixa do primeiro disco.
* Alice sempre foi grande fã da música
popular norte-americana que não fosse rock and roll. Além de incluir no disco School’s Out temas do musical West Side Story de Leonard Bernstein,
nos anos 70 ele declarou que adorava ficar ouvindo Burt Bacharach e que as
únicas músicas que gostaria de ter composto eram “My Funny Valentine” e ‘The
Lady Is A Tramp”.
* Ciente da importância da imagem, Alice
foi também pioneiro do telão em shows de rock. Seus shows de 1973-4 foram os
primeiros a incluir câmeras que focalizavam seu rosto em close e o projetavam
numa grande tela – sim, um “telão” – logo acima do palco.
* Se existiu alguém altruísta a ponto de
literalmente dar a camisa pelo irmão, foi Glen Buxton. Ele contava que uma
noite ficou bebendo com Jim Morrison até de manhã, e no dia seguinte. Bem
cedinho, Jim precisava tirar uma foto para uma capa de disco dos Doors. Pois
bem, de manhã Jim não só estava na maior ressaca, como nem camisa ele tinha.
Então Glen lhe emprestou uma camisa roxa que estava usando. Pode conferir: é
esta a camisa que Jim está usando na capa do disco Waiting For The Sun dos Doors.
* Bob
Ezrin, o George Martin (ou, para quem preferir, o Rogério Duprat) de Alice
Cooper, o produtor que soube canalizar o potencial da banda e levá-la ao
sucesso, usou uma artimanha curiosa para que este sucesso fosse ainda maior. No
Canadá dos anos 1960 para 1970 as emissoras de rádio eram obrigadas por lei a privilegiarem
artistas locais; então Ezrin, que é canadense e tocou teclados em algumas faixas
de Love It To Death, incluiu na capa
do disco o crédito “‘Toronto Bob’ on organ and piano”.
* Fã de Gene Vincent, Alice dedicou ao xará
uma faixa de seu segundo LP, “Return Of The Spiders”. Outro ponto em comum entre
ambos os roqueiros é que Gene grande “outsider”, talvez o primeiro do rock and
roll, sempre de casaco de couro preto e expressão contorcida de dor, devido a
uma perna ferida no exército e que nunca sarou de vez.
DISCOGRAFIA
Pretties For You (Straight, março de
1969. CD: Rhino, outubro de 1999)
Titanic Overture/10
Minutes Before The Worm/Sing Low Sweet Cheerio/Today Mueller/Living/Fields Of
Regret/No Longer Umpire/Levity Ball/B.B. On Mars/Reflected/Apple Bush/Earwigs
To Eternity/Changing, Arranging
Easy Action (Straight, junho de
1970)
Mr. &
Misdemeanor/Shoe Salesman/Still No Air/Below Your Means/Return Of The
Spiders/Laughing At Me/Refrigerator Heaven/Beautiful Flyaway/Lay Down And Die,
Goodbye
Love It To Death (WB, março de 1971)
Caught In A
Dream/Eighteen/Long Way To Go/Black Ju Ju/Is It My Body?”Halloweed Be My
Name/Second Coming/Ballad Of Dwight Fry/Sun Arise
Killer (WB, novembro de 1971. CD: setembro de
1989)
Under My Wheels/Be My
Lover/Halo OF Flies/Desperado/You Drive Me Nervous/Yeah, Yeah, Yeah/Dead
Babies/Killer
School’s Out (WB, junho de 1972. CD:
junho de 1989)
School’s Out/Luney
Tune/Gutter Cat Vs. The Jets/Street Fight/Blue Turk/My Stars/Public Animal
Number 9/Alma Mater/Grande Finale
Billion Dollar Babies (WB, janeiro
de 1973)
Hello! Hooray!/Raped
And Freezin’/Elected/Billion Dollar Babies/Unfinished Sweet/No More Mr. Nice
Guy/Generation Landslide/Sick Things/Mary Ann/I Love The Dead
Muscle Of Love (WB, novembro de
1973)
Big Apple Dreamin’
(Hippo)/Never Been Sold Before/Hard Hearted Alice/Crazy Little Child/Working Up
A Sweat/Muscle Of Love/Man With The Golden Gun/Teenage Lament ‘74/Woman Machine
Live At The Whiskey A- Go-Go, 1969
(Edsel, março de 1992)
No Longer
Umpire/Today Mueller/10 Minutes Before The Worm/Levity Ball/Nobody Likes
Me/B.B. On Mars/sing Low Sweet Cheerio/Changing, Arranging
Alice Cooper Solo:
Welcome To My Nightmare (WB, março de
1975. CD: novembro de 1987)
Welcome To My
Nightmare/Devil's Food/The Black Widow/Some Folks/Only Women Bleed/Department
Of Youth/Cold Ethyl/Years Ago/Steven/The Awakening/Escape
Alice Cooper Goes To Hell (WB, julho de
1976)
Go To Hell/You Gotta
Dance/I'm The Coolest/Didn't We Meet/I Never Cry/Give The Kid A
Break/Guilty/Wake Me Gently/Wish You Were Here/I'm Always Chasing
Rainbows/Going Home
LACE AND WHISKEY (WB, de 1977)
It's
Hot Tonight/Lace & Whiskey/Road Rats/Damned If You Do/You And Me/King of
the Silver Screen/Ubangi Stomp/(No More) Love At Your Convenience/I Never Wrote
Those Songs/My God
THE ALICE COOPER SHOW (WB, de
1977)
Under My Wheels/I'm
Eighteen/Only Women Bleed/Sick Things/Is It My Body/I Never Cry/Billion Dollar
Babies/Devil's Food/The Black Widow/You And Me/I Love The Dead/
Go To Hell/Wish You
Were Here/School's Out
From The Inside (WB, dezembro de
1978)
Flush The Fashion (WB, maio de 1980)
Talk Talk/Clones
(We’re All)/Pain/Leather Boots/Aspirin Damage/Nuclear Infected/Grim Facts/Model
Citizen/Dance Yourself To Death/Headlines
Special Forces (WB, de 1981)
Who Do You Think We
Are/Seven & Seven Is/Prettiest Cop On The Bloc/Don't Talk Old To
Me/Generation Landslide '81/Skeletons In The Closet/You Want It, You Got It/You
Look Good In Rags/You're A Movie/Vicious Rumours
Zipper Catches Skin (WB, de 1982)
Zorro's Ascent/Make That Money
Scrooge's/I Am The Future/No Baloney Homosapiens/Adaptable Anything For Yo/I
Like Girls/Remarkably Insincere/Tag, You're It/I Better Be Good/I'm Alive
Dada (WB, 1983)
Da Da/Enough's
Enough/Former Lee Warmer/No Man's Land/Dyslexia/Scarlet and Sheba/I Love
America/Fresh Blood/Pass The Gun Around
Constrictor (MCA, outubro de
1986)
Teenage Frankenstein/Give It Up/Thrill My Gorilla/Life And Death Of The Party/Simple Disobedience/The World Needs Guts/Trick Bag/Crawlin'/Great American Success Story/He's Back (The Man Behind The Mask)
Raise Your Fist And Yell (MCA, 1987)
Lock Me Up/Give The
Radio Back/Freedom/Step On You/Not The Kind Of Love/Prince Of Darkness/Time To Kill/Chop,
Chop, Chop/Gail/Roses On White Face
Trash (Epic, agosto de 1989)
Poison/Speak In The
Dark/House OF Fire/Why Trust You/Only My Heart Talkin’/Bed Of Nails/This
Maniac’s In Love With You/Trash/Hell Is Living Without You/I’m Your Gun
Hey Stoopid (Epic, 1991. CD:
junho de 1992)
Hey Stopid/Love’s A
Loaded Gun/Snakebite/Burning Our Bed/Dangerous Tonight/Might As Well Be On
Mars/Feed My Frankenstein/Hurricane Years/Little By Little/Die For You/Dirty
Dreams/Wind-Up Toys
The Last Temptation Of Alice
(Epic, 1994)
Brutal Planet (abril de 2000)
Brutal
Planet/Sanctuary/Wicked Young Man/Gimme/Blow Me A Kiss/Cold Machines/Take It
Like A Woman/It’s The Little Things/Pessi-Mystic/Eat Some More/Pick Up The
Bones
Há ainda um disco
semi-oficial gravado ao vivo em Toronto em 1969 e com dezenas de reedições
econômicas em CD. As faixas estão todas com títulos inventados (são quase todas
do primeiro LP); uma faixa, “Ain’t It Just Like A Woman”, nem é Alice Cooper, e
sim outro artista – pois é, trata-se do equivalente cooperiano dos Beatles In
Hamburg da vida (uma ou outra faixa do álbum duplo Live at The Star-Club 1962 não é com os Beatles e sim outros grupos
que se apresentaram no mesmo local e época).
Menção honrosa também
para duas faixas que só saíram em discos flexis promocionais, “Nobody Likes Me”
(1971), distribuído durante shows do disco Killer,
e “Slick Black Limousine” (1973), brinde do jornal inglês New Musical Express – e que apareceu em alguns LPs piratas do Led
Zeppelin!
Para terminar, más e boas notícias. Uma página na Internet supimpa sobre Alice Cooper que lá em 2001 serviu de fonte para esta matéria parece ter saído do ar. As boas notícias são duas. Primeira: uma edição da revista Poeira Zine lançou uma bela reportagem sobre a vinda de Alice ao Brasil em 1974. Segunda: não vou trazer para cá as gravações normais de Alice, todas em catálogo, mas sim uma coletaneazinha de regravações por artistas fantasmas - tem até uma que inclui Lilian Knapp e o pessoal do futuro Roupa Nova.
SLADE: NÓIS É NOIZE
Atendendo a vários pedidos - não meus, e sim de pessoas fãs de rock dos anos 1970 - , trago para cá uma matéria que escrevi na revista Metal Massacre em 2001 (vale lembrar que o editor era o emérito René Ferri) sobre a banda inglesa Slade, uma de minhas preferidas desde então até hoje.
Não atualizei o texto, mas o "remasterizei" e "remixei" corrigindo alguns errinhos.
Como fundo musical, e para mais curiosidade, não incluí gravações originais do Slade, em catálogo em lojas físicas ou virtuais, mas sim uma coletaneazinha de regravações raras e curiosas, a maioria "covers" fantasmas do tipo Top Of The Pops (quase sempre muito bem feitas, exceto detalhes como a guitarra em "Gudbuy T'Jane" e o vocal em "Take Me Bak'Ome"), e até uma versão brasileira.
(Ah, sim: o Slade marca presença em minha pesquisa sobre música e circo graças à capa do álbum Nobody's Fools.)
SLADE
por Ayrton Mugnaini Jr.
Um dia, se me deixarem, lanço um
livro sobre todos os artistas de que gosto desde a juventude, pouco me
importando se o mundo em volta os odiasse. Por enquanto, graças a Deus e à Metal Massacre, vou apresentando tal
livro em doses homeopáticas, um ou dois artistas por número da revista. E
quantos discordarão de que o Slade havia de ser um dos primeiros?
Na época de maior sucesso do
Slade, a primeira metade dos anos 1970, ele parecia ser apenas mais um expoente
do “glam-rock”, uma evolução do bubblegum, com ritmos pulsantes, guitarras
altas e distorcidas e melodias pegajosas, estilo este que fez a glória de
artistas como Suzi Quatro, Gary Glitter, Mud, Sweet e os mais sofisticados
David Bowie, Roxy Music e Mott The Hoople. Mas o velho e bom distanciamento
histórico nos permite ver e ouvir que o Slade não só foi um dos melhores grupos
dos anos 1970, como também dos mais influentes. Basta prestar atenção e, como
diz o próprio Slade, sentir o barulho: ouça “We’ll Bring The House Down” para
ver de onde o Kiss tirou o “ê-ê-ê-ê, êêêê!” de “I Love It Loud”, e imagine como
seriam as carreiras de Bon Jovi, David “Whitesnake” Coverdale e outros mestres
da balada pesada se o Slade não houvesse gravado “Everyday”, “She Did It To
Me”, “My Oh My”... Sem falar no Quiet Riot, cujos dois maiores hits foram
justamente “Cum On Feel The Noize” e “Mama Weer All Crazee Now”, covers você já
sabe de qual banda. E quem disse que o Oasis é um Beatles frustrado? É também
um Slade frustrado, já que gravaram “Cum On Feel The Noize” e Noel Gallagher
acaba de regravar “Merry Xmas Everybody” (hino natalino roqueiro que rivaliza
com “Happy Xmas” de John Lennon). De fato, muito antes do Sonic Youth e outros
se tornarem populares com o rótulo “noise”, o Slade já cantava “come on feel
the noize” – com “z”, para soar ainda mais “errado”, informal, e barulhento
Por falar em Beatles, o Slade foi
louvado como o Beatles dos anos 1970, por vários bons motivos: mesma formação
instrumental (duas guitarras sem muito virtuosimo mas bem arranjadas,
contrabaixo virtuosístico e bateria simples e segura), compunham quase todos
seu próprio repertório e seus raros covers soavam tão pessoais que pareciam
músicas próprias (como, por sinal, todo bom cover que se preze, na minha
opinião) – dois exemplos são “Hear Me Calling” do Ten Years After (o próprio
Alvin Lee agradeceu ao grupo pela pequena montanha em direitos autorais que a
regravação no álbum Slade Alive! lhe
rendeu) e “Move Over” de Janis Joplin (pelo menos em minha opinião ficou bem
melhor com o Slade, já que a Full Tilt Boogie Band tocava muito bem, mas com
pouca garra). Mais exatamente, o Slade lembra não os Beatles comportadinhos de
“I Want To Hold Your Hand” e “Yesterday”, mas os Beatles barulhentos e
descompromissados do “Álbum Branco” (disco que voltará muitas vezes à nossa
conversa). O próprio John Lennon era fã do grupo, não obstante o que a imprensa
brasílica noticiou na época. Em seu primeiro LP (ainda com o nome Ambrose
Slade), o Slade regravou “Martha My Dear”, do (olha ele aí) “Álbum Branco”. E,
tal como Lennon, Jim Lea, contrabaixista, principal compositor, líder e
arranjador do Slade, é mestre do plágio inspirado. Um exemplo é “Take Me
Bak’Ome”, um dos primeiros hits do Slade, admitido pelo próprio Jim Lea:
“Afanei um trecho ou dois de ‘Everybody’s Got Something To Hide’ [do “Álbum
Branco”, estão vendo só] e ninguém percebeu”. (Por sinal, nenhum artista está
imune a semelhanças e “coincidências; ainda no caso do Slade, compare, por
exemplo, “Everyday” e “Disney Girls (1957)”, sucesso dos Beach Boys, e “I’m
Mee, I’m Now And That’s Orl” – lado-B de “Cum On” – com “The Spider And The
Fly” - outro ilustre lado-B, de “Satisfaction” dos Stones - ou “My Oh My” com
(escolha) “Theme For Young Lovers” dos Shadows ou o tema do seriado de TV Laramie.)
QUANDO EU TÔ DANÇANDO EU NÃO TÔ BRIGANDO
Duas das grandes distinções e
qualidades do Slade são o senso de humor e a ausência de pretensões que não
fossem as de fazer dançar e divertir a si mesmos e aos fãs. Interessante é
lembrar, quase trinta anos depois, Carlos “Pop” Gouvêa esculhambando o Slade na
Folha de S. Paulo por sua
“musicalidade vazia” e “letras que não dizem nada”, enquanto elogiava o Made In
Brazil pelos mesmos motivos... Afinal, o próprio rock and roll remete à frase
do cineasta Samuel Goldwyn, que me permito atualizar: quem quiser passar alguma
mensagem, dirija-se à Empresa de Correios e Telégrafos ou mande um e-mail!
Outro jornalista (cujo nome me escapa no momento), a meu ver, resumiu melhor o
Slade: “Sua música é nada imaginativa, formulaica e monótona, e nos ensina
coisa alguma. Mas como soa bem! Batida pesada, ritmo pulsante, letras falando
de beber, dançar ou absolutamente nada.” E durante a primeira metade dos anos
1970 o Slade fez questão de ser antiprogressivo e o menos “cabeça” possível até
nos títulos de suas músicas, quase todos escritos com uma incorreção gramatical
que faz Carla Perez parecer Zélia Gattai e de que Adoniran Barbosa se
orgulharia: “Skweeze Me Pleeze Me”, “Gudbuy T’Jane”, “Cuz I Luv You”...
Audições mais atentas mostram que
o Slade ia além do mero rock and roll; como bons ingleses, também são fãs de music-hall
e jazz tradicional, como denotam “Cuz I Luv You”, “In For A Penny” e a mais
obscura “Kill’em At The Hot Club Tonite”. Fãs dos Kinks notam ter o Slade muita
influência deles, pela mistura peso+melodia e comunicação com a platéia (mas,
ao que sabemos, o único encontro entre ambos os grupos resultou em Ray Davies
despejando cerveja em cima de Noddy Holder, com intenções não muito amigáveis).
E em 1974 um jornalista inglês disse, de brincadeira, que só faltava sair um
disco chamado Symphonic Slade.
Imagino qual terá sido ou seria sua reação, quase trinta anos depois, ao ouvir
Julian Kershaw, grande autor de trilhas de filmes, e seu arranjo para quarteto
de cordas de “Merry Xmas Everybody”...
Como grupo, o Slade também é (ou
pelo menos era) imbatível, o típico resultado-maior-que-a-soma-das-partes. O
vocalista e guitarrista-base Noddy Holder (nascido em 1946) chamava atenção não
só por sua voz, uma das melhores e mais potentes de todo o rock, mas também por
sua presença de palco e domínio da platéia – “uma versão mais amigável do Diabo
da Tasmânia”, segundo o jornalista Ken Sharp. Suas principais influências como
cantor são Al Jolson (um dos maiores cantores pop pré-rock) e Little Richard (o
maior de todos os gritadores do rock). Dave Hill (nascido em 1946),
guitarra-solo, compensa o fato de ser nanico usando roupas e guitarras as mais
gritantes (em ambos os sentidos, no caso do instrumento). Jim Lea (nascido em
1949), virtuose do contrabaixo e ainda versátil o bastante no violino e
teclados, tem talento especial para melodias simples e grudentas – como resumiu
um crítico inglês, “o Slade não tenta
compor sucessos, sabe que os está
compondo”. E vejam só, crianças, como as aparências enganam: o baterista Don
Powell (nascido em 1946), geralmente o membro do Slade menos lembrado, foi nada
menos que o responsável pela formação e união do grupo. Mais um detalhe: a
exemplo dos Beatles com Liverpool e os Animals com Newcastle, foi o Slade que
colocou no mapa do rock a grande cidadezinha de Wolverhampton, famosa por suas
indústrias de engenharia e metalurgia (bem apropriada, portanto, para um grupo
de metal) e que hoje tem cerca de 300 mil habitantes.
VENTOS BRAVIOS ESTÃO SOPRANDO
O Slade é um caso raro (ao lado
do Creedence, Elton John, David Bowie e outros) de artista que batalhou anos
até chegar ao estrelato, mas mantém o pique e a jovialidade, quando finalmente
estoura, e todo mundo pensa que é “novo talento”. O Slade nasceu da confluência
de duas bandas, Steve Brett & The Mavericks (da qual veio Noddy Holder) e
The Vendors (onde tocavam Dave Hill e Don Powell), que surgiram em 1964,
gravaram alguns compactos ou demos. Em 1965 Dave Hill e Don Powell formam outra
banda, The ‘N Betweens, que grava algumas faixas, produzidas por Bobby Graham (um
dos maiores bateristas de estúdio da Inglaterra, aquele que tocou nas primeiras
gravações dos Kinks e em muitas do Dave Clark Five) mas que , veja só, lançadas
apenas na França); no ano seguinte os ‘N Betweens mudam de formação e se tornam
um quarteto, com Jim Lea e Noddy Holder – isso mesmo, o Slade com outro nome, e
que grava mais um compacto, um cover de “You Better Run” dos Rascals – desta
vez o produtor é o estadunidense malucão Kim Fowley (cujo currículo inclui Gene
Vincent, Soft Machine, John Cale, as Runaways e muitos outros). Todas estas
gravações pré-Slade foram reunidas, e ainda por cima com faixas inéditas, num
CD indispensável para pessoas fãs e pesquisadoras, The Genesis Of Slade, lançado em 1996.
Em 1969, após uma infinidade de
shows, os ‘N Betweens chamam a atenção da gravadora Philips, que os contrata e
sugere que mudem de nome. Uma das sugestões é Nicky Nacky Noo (que tal?), mas
logo surge uma melhor: Ambrose Slade, inspirada na secretária de um alto
funcionário da Philips, a qual tem o costume de dar nomes a tudo: Ambrose era
sua bolsa e Slade seus sapatos. Com tudo em cima, o Ambrose Slade grava o
primeiro LP, Beginnings, que não
chega a ver a cara das paradas, mas chama atenção para o grupo – especialmente
Chas Chandler, ex-contrabaixista dos Animals e um dos melhores empresários de
todos os tempos, que poucos anos antes guindara Jimi Hendrix ao megaestrelato.
Ao ver um show do Ambrose Slade, Chandler resolve se tornar seu empresário e
produtor; sendo grandes admiradores de Chandler, os rapazes sobem pelas
paredes. Uma das primeiras providências de Chandler é encurtar o nome do grupo,
para Slade. E um de seus raros erros como empresário – na verdade idéia de
Keith Altman, assessor de imprensa do Slade – é promover o grupo como
“skinhead”, cabeças raspadas e tudo – só que, ontem como hoje, os skinheads de
verdade (não contando os mais radicais, adeptos da violência) se distinguem por
serem fãs de música jamaicana, e a experiência dura pouco, para alívio de
todos, como resume Jim Lea ao recordar o primeiro show do grupo como
“skinheads” de butique: “Havia um espelho na outra ponta do salão e podíamos
nos ver enquanto tocávamos. Parecíamos horrendos.”
DESCE E ARRASA!
Em 1970 Chandler transfere o
Slade da Philips para a Polydor, o que na prática dá no mesmo, já que ambas as
gravadoras pertencem à PolyGram, mas a Polydor anda mais presente nas paradas
de sucesso. Neste ano sai Play It Loud,
primeiro LP do grupo com o nome Slade, que chama atenção por boas músicas do
próprio grupo (“Know Who You Are”, “Pouk Hill”) e regravações aparentemente
díspares, mas que se revelam adequadas: “The Shape Of Things To Come” (dos
norte-americanos Max Frost & The Troopers, composição da dupla Mann &
Weil e sucesso na trilha do filme Wild In
The Streets, em português O Grito Da
Liberdade) e “Could I”, veja só, do Bread (banda tida como muita gente boa
como apenas “melosa”). Em 1971, o Slade finalmente conquista as paradas (pois
é, nem aqui escapamos dos aniversários redondos, 30 anos de sucesso – e, para
completar, dez anos dos primeiros CDs do Slade!), com “Get Down And Get With
It”, de Bobby Marchan, sucesso de Little Richard e que se torna uma das mais
emblemáticas do repertório do grupo. Incentivados por Chandler a dependerem
cada vez menos de músicas alheias, começam a se aventurar compondo; logo
descobrem que Jim Lea e Noddy Holder são os mais fluentes e inspirados para compor,
nascendo assim a dupla Lea & Holder, os legítimos Lennon & McCartney
dos anos 1970. (Tudo bem, não pretendo brigar com quem preferir Page &
Plant, os Lennon & McCartney do heavy, vá lá que seja.) Então o Slade
emplaca hit atrás de hit, e inclusive os LPs fazem sucesso: Slade Alive! (1972), um dos melhores
discos ao vivo de todos os tempos; Slayed?
(1973), com “Gudbuy T’Jane” e “Mama Weer All Crazee Now” (curiosidade: compare
“I Don’ Mind” com a homônima do posterior Wonderworld
do Uriah Heep); Old, New, Borrowed And
Blue (1974), onde se destacam “My Friend Stan” e a balada “Everyday”.
Tamanha é a boa sorte do Slade
neste período que nem mesmo um grave acidente automobilístico estraga a festa.
Em 1973 o carro de Don Powell esborracha-se contra um muro; sua namorada,
Angela Morris, morre, e ele escapa da morte por pouco, mas perde olfato e paladar
e passa a ter lapsos de memória permanentes. Seus colegas de grupo provam ser
realmente amigos leais, dando-lhe a maior força. Os fãs também ajudam muito com
votos de restabelecimento; um deles, percebendo que o carro de Powell derrubou
um muro defronte à sua escola, escreve: “Da próxima vez, vê se derruba a
escola, não só o muro!”
Em 1974 o Slade foi convidado
para estrelar um filme; o resultado foi Flame,
espécie de autobiografia disfarçada, com o grupo no papel de outro grupo,
chamado justamente Flame; o filme (não lançado comercialmente no Brasil)
tornou-se objeto de culto e mais tarde foi reconhecido como bom filme de rock.
Enquanto isso, o disco da trilha sonora, Slade
In Flame (1974), manteve o grupo nas paradas, puxado pela balada folkosa
“Far Far Away” e a “progressiva” “How Does It Feel” – resumida por um fã como “o
‘Álbum Branco’ [não falei?] numa faixa só, com metais e tudo”. (A edição ianque
do LP tirou duas faixas e incluiu outras duas, sucessos na Inglaterra em
compactos, “Bangin’ Man” e “Thanks For The Memory”.)
VEJAM O QUE VOCÊS FIZERAM
Infelizmente, o Slade, a exemplo
de outros artistas ingleses como T. Rex, Sweet e Oasis, não conseguiu repetir
nos EUA – o maior e mais poderoso mercado fonográfico do mundo – o mesmo
sucesso que emplacou em casa e em outros países. Embora a crítica ianque
elogiasse o Slade, o grande público não o recebeu tão bem, talvez por
considerá-lo britânico demais (inclusive, em algumas cidades dos EUA o filme Flame teve de ser legendado!). De modo
que o Slade desperdiçou energia e atenção com um público que não o queria (e
que talvez nem merecesse coisa melhor), chegando a fixar residência nos EUA e
conseqüentemente descuidando da velha e boa Inglaterra. De modo que em casa os
discos começaram a vender menos, o que é uma pena, pois ainda têm seus bons
momentos. Vejamos:
Nodoby’s Fools (1976), gravado quase todo nos EUA e com influências
locais, inclusive vocais femininos e um pouco de reggae e r&b (à moda do
Slade, é claro) inclui dois hits, a balada lennonesca “In For A Penny” e “Let’s
Call It Quits”, imitação de “Play Something Sweet”, do mestre do r&b Allen
Toussaint. Whatever Happened To Slade
(1977) ironiza o sumiço do grupo das paradas já a partir do título (“o que quer
que tenha acontecido com o Slade”), e apenas uma faixa fez sucesso, “Gypsy Road
Hog”. Slade Alive Vol. 2 (1978)
repetiu a fórmula do primeiro volume, mas não o sucesso. Return To Base (1978), apesar de incluir muitas boas faixas
(“Wheels Ain’t Coming Down”, “I’m A Rocker”), vende quase nada.
A esta altura, o Slade está quase
totalmente desanimado, e só não está na pior graças a muitos shows em barzinhos
e aos direitos autorais de suas gravações mais antigas, que ainda vendem muito
bem. Até que, em 1980, o Slade é convidado para tocar (preencher uma vaga, na
verdade) no Reading Rock Festival. A princípio, o grupo recusa, mas Chas
Chandler (em uma de suas últimas atuações como empresário do grupo, antes de
deixar o posto amigavelmente) os convence com um excelente argumento: “Se o
grupo tiver de acabar, que seja em grande estilo”. Resultado: esta edição do
Reading passou à História como aquela em que o Slade roubou o show, sendo a
única atração do evento não recebida com latadas ou garrafadas. Então o grupo
cria alma nova, inclusive nas paradas de sucesso.
VAMOS BOTAR A CASA ABAIXO
No LP We’ll Bring The House Down (1981, que inclui algumas gravações de Return To Base) a faixa-título é o
grande destaque; o álbum seguinte, Till
Def Do Us Part (1981, mais conhecido no Brasil não pelo trocadilho do
título, mas sim pela capa, o “Slade da orelha”), também vende bem, puxado pela
faixa “Lock Up Your Daughters”. 1982 traz o terceiro (e muito bom) disco ao
vivo, Slade On Stage; em 1983 é a vez
de The Amazing Kamikaze Syndrome
(retitulado nos EUA com o nome de outra faixa, Keep Your Hands Off My Power Supply), que traz outros megasucessos,
“My Oh My” e “Run Runaway” (que se torna grande sucesso até nos EUA e foi usada
por nosso amigo Leopoldo Rey como tema de abertura de seu programa Momento Do Rock na FM 97, algum aí se
lembra?). Rogues Gallery (1985) é
quase uma coletânea de sucessos: “All Join Hands”, “Little Sheila”, “Seven Year
Bitch”, “Mysterious Myster Jones”. E quem inspirou o título do disco seguinte, You Boys Make Big Noize (“vocês,
rapazes, fazem barulhão”, 1987), foi Betty, a moça (ou senhora) que servia o
chá no estúdio Wessex, onde o Slade gravou o disco, cujo hit foi “Still The
Same” (não é a mesma do Bob Seger, mas uma baladona igualmente boa).
Em 1989 o Slade passa por
mudanças. Dave Hill grava um disco-solo; Don Powell assume uma loja de
antigüidades; Jim Lea passa a produzir discos de bandas heavy; Noddy se torna
apresentador numa emissora de rádio em Manchester e da emissora de TV Granada
(lamentável desperdício de uma das melhores vozes do rock, segundo alguns fãs),
começa a gravar muitos jingles e sai amigavelmente do grupo. “Eu sinto falta
das duas horas no palco, mas não do resto – as viagens, quartos de hotel,
camarins, ficar enfiado em aeroportos. É preciso lembrar que o dia tem 22 horas
além das duas no palco”, disse Noddy à revista Record Collector. “Após 25 anos com os mesmos caras, eu não via
para onde mais poderíamos ir, não tínhamos mais assunto, mais músicas para
compor que soassem novas e frescas. Os outros não perceberam isso, mas eu
percebi.” Jim Lea sai praticamente em seguida: “Sem Noddy é forçar a barra, é
ridículo”, justifica.
Mas, mesmo com mudanças, a vida
continua. Dave Hill e Don Powell seguem em frente como Slade II, incluindo novo
vocalista (Steve Whalley); em 1993 lançam um disco, Emergency! (saiu aqui pelo selo Spider), e continuam por aí fazendo
muitos shows e gravando de quando em vez.
E a troca de milênio também traz
novidades. Jim Lea lança seu primeiro compacto-solo, “I’ll Be John, You Be
Yoko” (e viva o “Álbum Branco”!). Sai Who’s
Crazee Now?, autobiografia de Noddy Holder. Temos também o primeiro
disco-tributo, Slade Remade, com
participações de Chris Farlowe e (esta é para pensar) Rick Wakeman.
Para terminar, uma bela frase, ou
melhor, um conselho de Noddy para aspirantes a músicos: “Só prossigam na
carreira se gostarem dela cem por cento... e mantenham o senso de humor, porque
irão encontrar muita tristeza no caminho!”