Sunday, July 05, 2015

POSSO DAR UMA CANJA... COM UMA CANÇÃO MINHA EM MEU PRÓPRIO DISCO?

Vejam o que é sincronicidade... Justamente quando eu ia fazer a redação final deste texto, concluí a leitura de uma bela fonte para minhas pesquisas sobre MPB e circo e a relação entre religião & rock brasileiro: o livro Aquarelas Do Brasil, coletânea de contos e trechos de romances brasileiros que citam música popular, organizada por Flávio Moreira da Costa. A antologia inclui um conto do próprio FMC, e ele apresenta justificativa que apóio e complemento: o Brasil tem a ideologia da “falsa modéstia”, da “culpa” católica, da inveja fazer-sucesso-é-ofensa-pessoal; portanto, neste país uma pessoa citar a si mesma é “falta de ética”, “auto-referência” como ofensa ou “excesso de ego”, ao passo que nos EUA e Europa, como lembra FMC, a auto-inclusão em antologias é não só autorizada como também esperada – afinal, concluo, uma pessoa que divulga tantas outras tem direito a um pouco de auto-promoção... Isso serve como boa introdução para o tema deste texto: artistas que dão canja autoral em seus próprios discos-tributos ou temáticos, por vaidade, ganância, prazer ou até um pouco de cada, e dos quais este texto é apenas um ligeiro apanhado.

MÚSICA TUA, MAESTRO!

Por exemplo, o maestro e trombonista Ray Conniff variou um pouco a fórmula de seus álbuns dos anos 1960 e 1970, reunindo arranjos suaves para sucessos do momento, incluindo uma ou outra composição própria, e com o lembrete “Composta por Ray”, canções que, se não memoráveis, tampouco ofensivas.


Idem, no Brasil, o maestro e violonista Waltel Blanco, de quem tenho em mãos dois LPs “fantasmas” (lançados com crédito a orquestras e conjuntos “ad hoc” formados por ele e outro pessoal de estúdio) de fins dos anos 1960: Muito Legal - Linha Jovem, creditado a The Song Boys, e Direcional, pelo Conjunto Itam (“Itam” de Itamaraty, nome da gravadora); em cada um destes LPs  Waltel incluiu, ao lado de sucessos do momento, uma composição própria (e instrumental), respectivamente “Inédita” e “Dixie Da Gata”, garantindo assim alguns trocados de direitos autorais. 




(Esses LPs são tão raros e obscuros que já foi difícil conseguir essas reproduções quase virtuais das capas; tentarei obter e trazer melhores, podem me cobrar.)

Outro brasileiro que fez a mesma coisa, só que não como artista e sim como produtor, foi Raul Seixas, que produziu vários LPs da série Lafayette Apresenta Os Sucessos do tecladista Lafayette e, em meio a hits da ocasião, incluía em cada LP uma ou duas de suas composições (“Último Da Lista”, “Nasci Pra Te Amar”).


PEDRAS SOBRE PEDRAS

Obviamente, tal prática não é privilégio do Brasil... A música pop, como toda indústria cultural, exige e forma repertório; o que não falta são álbuns inteiros de artistas os mais diversos, de pop, rock, jazz, samba e até música erudita ligeira, interpretando canções de musicais como My Fair Lady e Hair! e de compositores de sucesso como,por exemplo, ninguém menos que os Rolling Stones, artistas cuja notoriedade inicial foi como intérpretes de outros artistas, como Chuck Berry e Willie Dixon, mas logo perceberam – instados pelo empresário e produtor Andrew Oldham – que a fonte de renda musical em médio e longo prazo era investirem em si mesmos como compositores; no início de 1966 eles já haviam se afirmado como tal, graças a sucessos como “Satisfaction”, “As Tears Go By”, “The Last Time” (embora “baseada” num clássico do gospel) e “19th Nervous Breakdown”. O próprio Oldham não perdeu tempo em lançar em 1966 o álbum The Rolling Stones Songbook, creditado à “Andrew Oldham Orchestra” (na verdade pessoal de estúdio com arranjos e direção musical de David Whittaker) e incluindo dez hits dos Stones, compostos por eles ou não, junto a... isso mesmo, um “Theme For A Rolling Stone” escrito pelo próprio Oldham (embora haja quem conteste dizendo que a autoria seja de Jagger & Richards).


Em 1966 houve ainda outro tributo-com-bônus aos Stones, e de quem menos se esperaria: Joe Pass, um dos melhores guitarristas de jazz, com o álbum The Stones Jazz. É forçoso reconhecer que as melodias dos Stones não eram tão ricas quanto as de Lennon & McCartney, quanto mais as de Gershwin, Porter, Berlin e quetais, mas Pass fez o que pôde – afinal, Dave Brubeck havia gravado um álbum de canções country transformadas em jazz, e em meados dos anos 1960, não obstante o sucesso da bossa nova e da força da natureza que era Louis Armstrong, o que mais vendia não era jazz e sim rock, pop e folk – , e o resultado é um álbum interessante e agradável de jazz-muzak, com direito a uma faixa que garante sua inclusão neste artigo: “Stone Jazz”, composição do próprio Pass.


DAQUI, DALI E DE TODA PARTE (CALMA, AINDA NÃO)

Indústria cultural que se preza é produtiva, e a referida dupla do produtor Andrew Oldham com o maestro David Whittaker não perdia tempo: em 1964 ela havia pegado carona nos dois mais famosos grupos estadunidenses de antes da Invasão Inglesa, os Beach Boys e os Four Seasons, lançando o álbum East Meets West – Famous Hits Of The Beach Boys And The Four Seasons (sim, os Four Seasons eram da Costa Leste e os BBS da Oeste), incluindo duas canções menos “hits” e menos “famous”, ambas parcerias de Oldham e Whittaker: “The Lonely Beach Boy” e “There Are But Four Seasons To Every Year”.


E matéria-prima de qualidade vem de toda parte, inclusive do Brasil. Voltando ao jazz, merece ser lembrado o álbum Salud! João Gilberto, Originator Of The Bossa Nova, do cantor Jon Hendricks,lançado em 1961 e que, descontando os equívocos do título (para os EUA toda a América que não fosse os EUA e Canadá era “cucaracha” y bastava ya) e da capa (exemplo de machismo suave), é um bom tributo a João Gilberto – e um raríssimo exemplo onde a faixa “bônus-carona” tornou-se o maior sucesso do álbum: “Jive Samba”, parceria de Hendricks com o saxofonista Nat “Cannonball” Adderley.


YEAH, YEAH, YEAH (AGORA SIM, SIM, SIM)

Quem mais, além de mim, deixaria o mais óbvio para mais tarde? Isso mesmo, álbuns-tributo-com-carona aos Beatles. Lembro-me de alguns. Um é da dupla instrumental estadunidense Santo & Johnny, formada pelos irmãos Santo e Johnny Farina (e muitas vezes compondo em parceria com a mana Ann Farina), mais lembrada hoje em dia pela bela balada “Sleepwalk” (podemos citar também “Love Lost”, regravada pelos Clevers/Incríveis) e de muito sucesso na era pré-Invasão Inglesa. Quando esta começou, em 1964, a dupla passou recibo referente a ela com o LP The Beatles Greatest Hits Played By Santo & Johnny, que, ao lado de dez hits dos Fab Four, inclui duas canções do trio Farina, “The Beatle Blues” e “The Beatle Stomp”.


Outra dupla de canções-bônus-caronistas do mesmo ano de 1964 está no LP Dance To The Hits Of The Beatles do grande maestro e compositor Jack Nitzsche: “Ringo” (que o público mais velho ou “careta” não deve ter associado com o baterista dos Beatles e sim com Johnny Ringo, notório e legítimo cowboy-fora-da-lei do século 19; mal sabia Nitzsche que iria trabalhar com nosso Ringo, o Starr, no megahit “Photograph”) e “Beatle-Mania”. 


E se os Stones inspiraram um disco de jazz com bônus deste tipo, os Beatles têm pelo menos um, Beatlejazz!, lançado em 1964 pelo pianista Bob Hammer e incluindo entre vários sucessos do grupo a faixa-título, composta por Hammer em parceria com Bob Thiele.


Lembro-me agora de dois exemplos brasileiros – ou melhor, um e meio.

O, digamos, exemplo inteiro é o CD sem título da banda goiana Bitkids, lançado em 1996. Produzido por Renato Ladeira (sim,d’A Bolha e Herva Doce), este disco merece um estudo em separado por vários motivos. Um: o Bitkids era formado por guris nascidos na virada dos anos 1970 para 1980 e, salvo engano, é o primeiro tributo aos Beatles feito por crianças ou adolescentes em todo o mundo. Dois: o repertório é quase todo de versões em português feitas nos anos 1960, antes de Yoko Ono apertar o cerco e dificilmente liberar novas versões de canções de Lennon & McCartney; além de duas “bônus-carona”, temos versões recentes do repertório Beatle, mas de canções não de autoria do grupo e portanto fora da jurisdição de Yoko-san, como “Twist And Shout” (“Chegue Mais, Baby”) e “Please, Mr. Postman” (“Carteiro”). Três: o grupo teve vida curta, e de lá para cá um dos integrantes faleceu, outro seguiu carreira musical e, segundo algumas fontes, nem todos os Bitkids tocam no disco, substituídos por músicos de estúdio. A saga da banda pode ser decifrada em páginas como esta e mais esta.


O outro tributo-aos-Beatles-com-bônus de que me lembro agora é brasileiro-argentino e quase igualmente obscuro. Trata-se do LP duplo Tributo Aos Beatles, creditado a “The Beetles Group”. O álbum pode ser discutido também como “propaganda quase enganosa”: a capa não tem nenhuma foto deste “Beetles Group”, mas tem muitas e muitas fotos dos Beatles e as palavras “Tributo aos...” e “Interpreted by The Beetles Group” em tamanho pequeno o suficiente para serem despercebidas pelo público mais incauto e ao mesmo tempo grande o suficiente para dizermos “quem mandou não prestar atenção”.  Mais: o disco pega carona também na montagem brasileira do musical Beatlemania – só que este traz canções de toda a carreira dos Beatles, ao passo que o álbum duplo em questão só vai até 1965, embora a única faixa “bônus-carona”, “Forever Beatles”, soe ela mesma Beatles de 1966-69, incluindo citações de canções do grupo e até uma de Macca solo! O disco foi produzido por Billy Bond (que havia incluído citações de “Oh! Darling” e “She Loves You” em suas gravações como vocalista do Joelho de Porco), e este LP tem participações de Mauricio Birabent “Moris”, outro grande roqueiro argentino dos anos 1960 e 1970, e, segundo a página Senhor F, o saudoso Wander Taffo (que havia gravado com Bond no álbum de 1977 do Joelho).


E, para completar/complementar, temos algumas ilustrações sonoras: cada um dos álbuns comentados acima está representado por uma das faixas “bônus caronas” e uma faixa que, digamos, pagou ingresso (ou, pelo menos, ajudou a pagar as contas).

Andrew Oldham Orchestra
The Rolling Stones Songbook
Decca
Inglaterra, 1966
“Heart Of Stone” (Mick Jagger/Keith Richards)
“Theme For A Rolling Stone” (Andrew Oldham)

Andrew Oldham Orchestra
East Meets West – Famous Hits Of The Beach Boys And The Four Seasons
London/Parrot
EUA, 1964
“I Get Around” (Brian Wilson)
“There Are But Four Seasons For Every Year” (Andrew Oldham/David Whittaker)

Beetles Group
Tributo Aos Beatles
Círculo do Livro/Abertura Records
Brasil, 1979
“Wait” (John Lennon/Paul McCartney)
“Forever Beatles” (Billy Bond/Anthony/Moris/Wanderley Patry)

Bitkids
Bitkids
Polydor
Brasil, 1996
“Chegue Mais, Baby” (“Twist And Shout”) (Bert Russell/Phil Medley/versão: Renato Ladeira)
“Noite Maluca” (Hilton Júnior/Ricardo Júnior))

Bob Hammer
Beatlejazz!
ABC
EUA, 1964
“When I Get Home” (John Lennon/Paul McCartney)
“Beatlejazz” (Bob Hammer/BobThiele)

Conjunto Itam (com Waltel Blanco)
Direcional
Itamaraty
Brasil, c. 1968
“A Chuva Que Cai” (“È La Pioggia Che Va”) (“Remember The Rain”) (Bob Lind/versão em italiano: Mogol/versão em português: Antônio Marcos – o selo do LP diz “A. Marco”)
“Dixie Da Gata” (Waltel Blanco)

Jack Nitzsche
Dance To The Hits Of The Beatles
Reprise
EUA, 1964
“It Won’t Be Long” (John Lennon/Paul McCartney)
“Ringo” (Jack Nitzsche)

Joe Pass
The Stones Jazz
Pacific Jazz
EUA, 1966
“19th Nervous Breakdown” (Mick Jagger/Keith Richards)
“Stone Jazz” (Joe Pass)

Jon Hendricks
!Salud! João Gilberto, Originator Of The Bossa Nova
Reprise
EUA, 1961
“The Duck” (“O Pato”) (Jayme Silva/Neuza Teixeira/versão em inglês: Jon Hendricks)
“Jive Samba” (Jon Hendricks/Nat “Cannonball” Adderley)

Lafayette
Lafayette Apresenta Os Sucessos, Volume 10
CBS/Entré
Brasil, 1970
“Sweet September” (Joey Day/Alan Dischel)
“Nasci Pra Te Amar” (Raulzito)

Ray Conniff
Bridge Over Troubled Waters
Columbia
EUA, 1970
“Leaving On A Jet Plane” (John Denver)
“Someone” (Ray Conniff)

Santo & Johnny
The Beatles Greatest Hits Played By Santo And Johnny
Canadian-American
EUA, 1964
“And I Love Her” (John Lennon/Paul McCartney)
“The Beatle Stomp” (Santo Farina/Johnny Farina/Ann Farina)

Song Boys (com Waltel Blanco)
Muito Legal – Linha Jovem
Spot
Brasil, c. 1968
“Because Of You” (Arthur Hammerstein/Dudley Wilkinson)
“Inédita” (Waltel Blanco)


Confira aqui!