Wednesday, March 30, 2016

REBOLATION JORNALÍSTICO É BOM, BOM, BOM

A música popular sempre gostou de rebolado. Inclusive a anglo-saxã. Para quem não sabe, basta lembrarmos que "rebolar" em inglês é "to shimmy", e temos então o clássico do dixieland "I Wish I Could Shimmy Like My Sister Kate" (assinada por Armand Piron mas composta por ninguém menos que Louis Armstrong), "Shout And Shimmy" de James Brown (regravada pelo Who) e os rocões "Shimmy Shake" e "Shimmy Shimmy" (ambas estraçalhadas pelos Beatles em Hamburgo, e ainda John cantou a segunda como "shitty"). Não, não esquecerei da paródia de dixieland "Miss Lilly Higgins Sings Shimmy In Mississippi's Spring" da trupe argentina de humor musical Les Luthiers. Nem da paródia "Shimmy Like My Sister Arthur" (!) da banda inglesa Shadows.

Lembrei-me de tudo isso ao ser encontrado em um sebo por alguns exemplares de Shimmy, revista carioca em formato pequeno que durou de 1927 a 1934 - duração até que boa para revistas brasileiras de qualquer tempo. A Shimmy era revista de humor, variedades e erotismo - pode até ter sido a primeira publicação brasileira sistematicamente erótica. Certamente, a revista era bem feita e seu humor era quase sempre picante mas sutil. (Ah, sim: perdoem estas minhas reproduções de qualidade abaixo da ideal, e o facto de todos estes meus exemplares estarem encadernados num volume único também não ajuda muito.)


Sim, a Shimmy era baluarte do, digamos, machismo suave; belas damas como adorno nas capas e páginas são o que não falta. Mas uma boa leitura em várias edições revela outras noções, como a de que maridos foram feitos para serem traídos - ou, como diz a revista, "enganados" - e de que homens são o oposto das balzaquianas, tornando-se nada ao completarem 30 anos de idade.



Um ilustre colaborador de Shimmy foi o ainda iniciante Lamartine Babo, sua bela biografia Trá-Lá-Lá lembra que ele usou vários pseudônimos, mas um destes meus exemplares inclui uma colaboração de 1928 que ele assinou como ele mesmo.


Na pesquisa para minha saudosa coluna "Hora Do Passeio" na revista Cães & Cia., descobri na Shimmy esta notícia que já então era curiosidade antiga:


Hoje em dia há uma revista virtual chamada Shimmie, sem nada a ver além do nome. Tem mais sobre nossa Shimmy em lugares como este. E, realmente, para se fazer revista no Brasil tem que rebolar, rebolar, rebolar...

Thursday, March 17, 2016

DESMITANDO: GRANDES MITOS DA MÚSICA BRASILEIRA

Desde os primeiros grunhidos primitivos aos mais recentes grunhidos primitivos, o que nunca faltou são noções e dados que muita gente ouve sem questionar ou verificar e mesmo assim passa adiante. Aqui estão alguns dos maiores de tais mitos da música brasileira, incluindo rock brasileiro. (Um ou outro destes mitos – ou, mais exatamente, erros repetidos até quase se tornarem verdades - foi repetido até por este que vos escreve na pura ignorância de uma versão mais exata; e, já que quem critica tem de apresentar solução, esta autocrítica vem de brinde com as (auto-)correções.)

Começando do começo, pelos primórdios da fonografia brasílica:

* “Pelo Telefone” foi o primeiro samba gravado em disco

Nããããão! “Pelo Telefone”, composição de Donga e Mauro de Almeida (autoria algo controversa, mas não vem ao caso agora), gravado em novembro de 1916 e lançado em dezembro (cem anos já...), foi “apenas” o primeiro samba a fazer grande sucesso e se tornar um clássico da MPB. Há pelo menos dez exemplos anteriores a trazerem no disco o crédito de “samba”, alguns sendo “Urubu Malandro” de Pixinguinha (c. 1912-1914), “A Viola Está Magoada” de Catullo da Paixão Cearense (c. 1912-1915), “Quando A Mulher Não Quer” (autoria desconhecida, c. 1908-1912) e “Em Casa De Baiana” (também de autoria desconhecida, c. 1911 – e cujo selo tirei de História do Samba, bela coleção de fascículos-e-CDs da Editora Globo. E não reparem o erro indelicado de grafia de “Casa” no selo do disco).



* “Isto É Bom” foi o primeiro disco brasileiro

Outro caso de “apenas”. “Isto É Bom”, composição de Xisto Bahia em gravação do cantor Bahiano, foi “apenas” o disco que recebeu o número 10001 no primeiro catálogo da Casa Edison, lançado em 2 de agosto de 1902 (e aqui reproduzido “apud” o primeiro volume do sempre indispensável livro Panorama Da Música Popular Brasileira de Ary Vasconcellos); nota-se neste catálogo que “Isto É Bom” foi lançado simultaneamente com dezenas de outros discos, e que, dada a popularidade de Bahiano, pode até ter sido o primeiro a ter sido gravado, mas vai saber...



(Curiosidade mugnaínica: a Casa Edison lançou este disco com o selo Zon-O-Phone. Este selo soa familiar? Sim, é o mesmo selo Zonophone, originalmente alemão (tal como o Odeon, também usado - e com muito mais frequência - pela Casa Edison, que inclusive mandava prensar os discos na Alemanha) mas que comprou seu nome de uma gravadora estadunidense falida, e que décadas depois seria unido pela EMI inglesa a outro, Regal, formando o Regal Zonophone, onde gravariam Joe Cocker, o Procol Harum, The Move e outros grandes roqueiros. Quem gosta de acompanhar tais epopéias pode se divertir em páginas como esta.

Agora, MPB em geral:

* Luhli é sobrinha-neta de Noel Rosa

A grande cantora e compositora Luhli (ex-Luli), autora de sucessos de Ney Matogrosso com e sem os Secos & Molhados como “O Vira”, “Fala” e “Bandoleiro”, teria de ter sido filha de uma das duas únicas sobrinhas de Noel, Irami Medeiros Rosa de Melo e Maria Alice Joseph, filhas de seu único irmão. Hélio Rosa, com idades de 72 e 70 anos em 2012 segundo a Folha de S. Paulo. Mas Luhli nasceu quase ao mesmo tempo que elas, em 1945. Ela tem em comum com Noel Rosa o facto de também ser carioca de Vila Isabel, e sua família, além de ser uma das fundadoras do bairro, é muito amiga da família de Noel, afinidade esta tão grande que Luhli até afirmou ser sobrinha-neta de Noel – e muita gente boa levou ao pé da letra...

* “Ou não” é bordão criado e usado por Caetano Veloso

Na verdade, é o título do primeiro álbum de Walter Franco e um verso de sua anti-canção “Cabeça”. Talvez o crédito equivocado a Caetano deva-se a seu álbum Araçá Azul ter saído praticamente junto a Ou Não, em fevereiro de 1973, e ambos os discos serem bastante semelhantes no experimentalismo anticomercial com vanguarda, rock e MPB. E Caetano não perde oportunidade para desmentir: “Mesmo que tenha sido uma confusão nascida da ignorância de alguns humoristas, é uma honra para mim ter herdado o bordão ‘ou não’ de Walter Franco.” (Talvez um precedente a Walter ou Caetano seja a estrofe “a cultura/a civilização/elas que se danem/ou não” de Gilberto Gil, mas sem dúvida Walter levou a idéia muito adiante).

* Claudya foi grande rival de Elis Regina

Em 1965, Claudya, uma das maiores cantoras brasileiras, apresentou-se no programa O Fino Da Bossa, apresentado na TV Record por Elis Regina, e ela já cantava tão bem que foi convidada pelo produtor e compositor Ronaldo Bôscoli para estrear um show chamado Quem Tem Medo De Elis Regina?. Claudya, que era fã de Elis, se recusou, mas Elis ficou sabendo pela via deturpada do fuxico e surgiu daí o boato de uma rivalidade entre ambas.

* “Asa Branca” foi regravada pelos Beatles

Boato lançado por Carlos Imperial no segundo semestre de 1968 para promover Luiz Gonzaga, cuja popularidade estava em baixa devido às hegemonias do rock, do tropicalismo e da MPB com menos influências sertanejas ou nordestinas (obras como “Ponteio” e “Disparada” .eram minoria). Provavelmente Carlos Imperial aproveitou a ligeira porém notável semelhança do baião com uma das mais recentes gravações dos Beatles, “The Inner Light”, lançada em maio na Inglaterra e em junho no Brasil (em caso de dúvida, confira neste vídeo no Youtube a partir dos 0’08”).

Chegou a vez do pop-rock brasileiro:

* Lucinha Turnbull foi a primeira mulher brasileira a tocar guitarra elétrica

Típica bobagem (para citar uma canção de Rita Lee que fez sucesso com Lucinha) tão grande, e quase tão difundida, quanto dizer que o primeiro disco pirata foi The Great White Wonder de Bob Dylan... Lucinha Turnbull pode até ter sido a primeira brasileira a se notabilizar como grande guitarrista, mas há pelo menos dois precedentes documentados de guitarra tocada neste país pelo verdadeiro sexo forte: a cantora e compositora mineira Martinha (basta ver a capa de seu primeiro disco, de 1966) e a banda niteroiense As Feiticeiras (como atesta o livro Liverpool-Cantareira: A Rota Do Rock (Editora Niterói, 2004) do saudoso Marcus Heizer, sobre o rock em Nikiti dos anos 1960 e começo dos 1970).




* Raul Seixas encontrou-se com John Lennon nos EUA

Isso teria acontecido no primeiro semestre de 1974, quando Raul esteve exilado em Nova Iorque. Assim dizia Raul: “Discutimos a Sociedade Alternativa no Brasil. Notando meu nervosismo e minha ansiedade, ele disse pra eu relaxar, porque a gente estava em Nova Iorque e não na terra da paranoia.” Muita gente acreditou, até que nos anos 1990 surgiram os desmentidos, inclusive de pessoas emeritamente beatlemaníacas como Marco Antonio Mallagoli, que disse a este que vos escreve: “Raul não precisava ter inventado isso para aparecer”.

* A canção "Menina-Veneno" de Ritchie fala de "!abajur cor de carmim" e não "de carne"

De onde conseguiram tirar isso? O certo é "de carne" mesmo, basta conferir o encarte do LP original. Tem mais: se fosse "carmim" não seria "cor de carmim", o que equivaleria a "cor de vermelho" ou "cor de azul". Não foi à toa que Ritchie, inglês de nascimento, chegou a dizer que muita gente brasileira nata conhece o idioma português ainda menos que ele... E se um Mustang pode ser cor de sangue, por quê um abajur não pode ser cor de carne?

* “Eu Te Amo Meu Brasil”, grande sucesso dos Incríveis, foi gravado especialmente para promover a ditadura militar

Esta marcha-rancho foi composta por Dom (sim, o da dupla com Ravel) simplesmente como uma ode ao país, uma “Aquarela Do Brasil” mais simples e direta. Mingo, guitarrista-base dos Incríveis, resumiu em entrevista a este que vos escreve: “Gravamos para o povo, não para os militares”, Mas o disco, lançado em outubro de 1970, fez tanto sucesso que a canção foi inevitavelmente cooptada pela ditadura militar – de forma algo semelhante ao compositor Richard Wagner ter sido associado ao nazismo devido a suas óperas terem sido consideradas bons exemplos de nacionalismo para a Alemanha nazista, e Wagner não pôde opinar por estar morto desde 1883, décadas antes da ascensão do nazismo em seu país...

* O rótulo “jovem guarda” foi inspirado em Lênin

Muita gente – inclusive este que vos tecla – ouviu dizer e saiu repetindo que o publicitário Carlito Maia, que nos anos 1960 trabalhou para Roberto Carlos e o pessoal do programa Jovem Guarda, tomou este nome de uma suposta frase do líder comunista Lenin, “o futuro pertence à jovem guarda, pois a velha está ultrapassada”. Eu, pelo menos, venho me penitenciar, após muita procura em vão por essa frase nas obras de Lênin. Mas para esse "não" há quatro "sims".

Sim 1: Lênin realmente exortou a juventude a lutar contra o capitalismo e a opressão em geral.

Sim 2: a expressão “jovem guarda” já vinha sendo muito usada pelo comunismo, embora não por Lênin.

Sim 3: Carlito Maia foi intencionalmente irônico ao usar uma expressão comunista para designar uma união de música e capitalismo, embora ele mesmo fosse de esquerda, sendo inclusive um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores.

E Sim 4: Maia deve ter utilizado a expressão ao saber que ela foi usada num congresso comunista mundial realizado em 1965, e cuja minuta inclui este trecho: “O novo movimento não pode esperar por super-homens nem ter messias, deve se basear no que pôde ser preservado por muito tempo, mas esta preservação não pode se restringir ao ensinamento de teses e pesquisa de documentos; ela usa instrumentos vivos para formar uma velha guarda e transmiti-las, com força e integridade, a uma jovem guarda”.

* Roberto Carlos proíbe toda e qualquer menção ao acidente que sofreu na infância

Realmente, Roberto proibiu algumas reportagens de jornais sobre o assunto. Numa de suas primeiras entrevistas coletivas dos anos 1990, uma repórter perguntou “por quê o artista Roberto Carlos faz tanta questão de esconder a pessoa Roberto Carlos” e ele esclareceu que não proíbe menções ao acidente, mas sim que elas sejam veiculadas com destaque suficiente para caracterizar exploração e sensacionalismo, como era o caso das reportagens acima mencionadas. Inclusive, após a entrevista citada foram lançados pelo menos dois livros que mencionam o episódio e não sofreram censura alguma, Eles E Eu de Ronaldo Boscoli e o meu Roberto Carlos: Esta É A Nossa Canção.

E, para acabar, alguns itens sobre justamente isso:

* As marchinhas de carnaval acabaram

As marchinhas apenas deixaram de ser opção de sucesso para a grande indústria fonográfica, por volta de 1985. Mas muita gente continua compondo marchas carnavalescas, havendo inclusive pelo menos dois concursos regulares dedicado a elas, nas cidades paulistas de São Luís de Paraitinga e Pindamonhangaba. Vale também lembrarmos discos recentes só de marchinhas novas (e boas), como o primeiro da banda Os Marchistas e Carnaval É Bom, Mas Com Você É Bem Melhor do grupo Paranga.

* Os festivais competitivos de música acabaram

Isso pode ser verdade para os festivais das emissoras de televisão; mas tais certames continuam firmes pelo interior do Brasil, como os de Avaré e Botucatu.

* O Brasil teve uma “volta do vinil” nos anos 2010

O “vinil” nunca voltou... simplesmente porque nunca foi embora. Tal formato nunca deixou de ser lançado no Brasil, embora nos anos 2000 as prensagens de LPs e compactos tenham se tornado mais raras, muitas vezes restritas a selos independentes, e alguns lançamentos tenham sido prensados em outros países, como a Alemanha – exatamente como os primeiros discos brasileiros (inclusive o supracitado “Isto É Bom”) cem anos antes. E "tudo acaba onde começou"...