ARTIGO BASEADO EM “CAUSOS” REAIS: LEOPOLDO REY (1944/2023)
Não só a Áustria, a Grécia e a Bélgica tiveram seus reis Leopoldos; o Brasil também teve. Ou melhor, teve, tem e sempre terá, vivo e presente em sua obra e trabalho de pesquisa, na lembrança de quem conheceu a pessoa franca, sincera, irreverente e bem humorada e no exemplo para quem mais se aventurar no rádio, jornalismo e produção musical. Sim, falamos de Leopoldo Rey, falecido de problemas cardíacos em 20 de janeiro, e este artigo é uma breve recolha de sua obra, inclusive como meu amigo e parceiro em emissoras de rádio, jornais, revistas e até festivais de música.
UM POUCO DO COMEÇO
O cidadão Francisco Leopoldo Santos d’Arienzo surgiu em 17 de agosto de 1944 e logo revelou vocação para música, não tanto tocar ou cantar, mas sim como escritor e radialista. “Logo fiquei famoso como ‘o cabeludo da cidade’”; não demorou para Leopoldo contrair a síndrome de Francisco Alves, Luiz Gonzaga e Roberto Carlos, sendo chamado de “Rei do Rock” e gostando a ponto de se crismar “Leopoldo Rey”, com a distinção do “Y”. Ele chegou a me presentear com alguns de seus discos dessa época, como este compacto de John Lennon da foto acima. Logo ele criou este carimbo, promovendo seu nome de guerra e usando as iniciais de seu nome completo:
F L S D
REY
Sim, as iniciais dispostas desta forma lembram uma sigla psicodélica muito famosa, e a intenção de Rey foi essa mesma...
DISCOTECA REAL
Muitas
das melhores famosas ou obscuras gravações do rock tornaram-se conhecidas do
publico brasileiro graças a Leopoldo Rey e seus programas radiofônicos, como Rock
Sandwich, Reynação e Momento do Rock; ele merece ser lembrado
e divulgado ao lado de Big Boy, Jacques Kaleidoscopio, Kid Vinil e outros
mestres.
Muito provavelmente você tem algum disco em que Rey participa de alguma forma. Um exemplo é a bela coletânea From 64 At 70, reunindo quase todos os maiores sucessos da primeira fase dos Kinks (1), e cujo texto da contracapa é dele.
E há pelo menos uma gravação onde Rey aparece como compositor: “Mexa-Se, Boy”, versão do clássico do blues “Mannish Boy” de Bo Diddley, em parceria com Oswaldo Vecchione (embora não creditada como versão), contrabaixista e líder da banda Made In Brazil, e lançada no álbum Pirata II do Made em 1986. (2)
Além disso, a voz de Rey pode ser ouvida em pelo menos um disco: o CD anexo a uma edição especial sobre Raul Seixas da revista Shopping Music, lançada em maio de 1998. Este disco inclui gravações inéditas de Raul e entrevistas dos anos 1980 por Marilia Gabriela, Pedro Bial, Kid Vinil, Valdir Montanari, André Barbosa Filho e, claro, Leepoldo Rey, os quatro últimos numa bela entrevista coletiva para o programa Rock Show da Excelsior AM em 1981. (Ah, sim: o texto desta revista é deste que vos escreve, e o disco quase incluiu a famosa confissão do plágio de “Rock Das Aranhas”, mas ficou de fora devido à qualidade sonora inferior às outras.)
Agora, Rey também chegou a ser vendedor de discos, ao menos pelo pouco tempo, na segunda metade dos anos 1980, que durou a loja Rebel Songs, na galeria Gemini, a que liga a Alameda Santos à Avenida Paulista. A Rebel Songs foi uma loja relâmpago, mas deu tempo para um “causo” que Rey me narrou. Foi a época do disco Yauaretê de Milton Nascimento, e a gravadora enviou um belo pôster promocional. Adivinhem quem foi visitar a loja e se encantou com esse pôster: Geraldo Vandré. Muita gente diz que ele finge loucura para não ser perturbado por simpatizantes da ditadura militar, e este “causo” talvez demonstre essa tese. Segundo Rey, Vandré viu o pôster e seguiu-se um diálogo assim:
-
Vende esse pôster pra mim?
-
Vender? Que nada, é material promocional da gravadora, eu te dou de presente e
depois pego outro.
-
Não quero de presente, faço questão de pagar!
-
Ah, deixa de bobagem, eu te dou de presente!
-
Não, eu quero pagar!
Ficaram
nessa até que Rey capitulou:
-
Tá bom, eu te vendo por preço tal.
E
Vandré respondeu:
-
Ah, muito caro, não quero!
E,
antes de ir embora, ainda colocou uma bela cereja no bolo:
- Me diz onde eu posso expor esse pôster e cobrar ingresso!
FAMILIA REAL
Tive
com Leopoldo Rey a mesma surpresa agradável que quando conheci, por exemplo, o músico
Mano Del Picchia e a cantora Cris Aflalo – a mesma surpresa que, por exemplo,
Chico Buarque causou em quem conhecia seu pai Sérgio Buarque de Hollanda e seu
parente Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira. Fiz “uma pergunta que você deve
ouvir umas quatro vezes por dia” e me responderam: Mano é neto de Menotti Del
Picchia e Cris é sobrinha do jornalista Armando Aflalo. Pois bem, ao saber que o
sobrenome de Leopoldo Rey era D’Arienzo, perguntei: algum parentesco com o
grande maestro e compositor argentino Juan D’Arienzo (1900/1976)? A resposta
foi um “sim” mais que entusiástico, acompanhado de um “causo”. Parentes de Rey
foram à Argentina e lá pegaram um táxi; o motorista era sociável e, conversa
vai, conversa vem, ele, ao saber que estas pessoas passageiras eram D’Arienzo e
parentes do maestro, ficou tão feliz que, vejam só, fez questão de não cobrar
pela corrida. (3) Inclusive, fui encontrado por um LP de Juan d’Arienzo que até
traz “Rey” no título – Juan era conhecido como “El Rey del Compás”, rei do
ritmo, e “Rey del Tango” – , e eu disse a Rey que iria presenteá-lo com este
disco em nossa reunião seguinte, que acabou não acontecendo...
Outro toque de realeza foi o apelido de Christina Queen dado à saudosa primeira esposa de Rey, Maria Christina Fagundes. E imaginem a Rainha Elizabeth II atendendo ao telefone dizendo “aqui é a mãe do Charles”. Pois bem, Vicentina d’Arienzo (1913/1996) foi grande atriz, professora de educação física e nada menos que a primeira mulher a apitar um jogo de futebol no Brasil (Palmeiras, então ainda Palestra Italia, contra o Esporte Clube Santana, da cidade de Itapeva); em 1939 casou-se com o “oriundi” Luiz d’Arienzo Neto, com quem teve duas filhas e um filho. Pois bem, em algumas vezes em que telefonei para Leopoldo Rey, ela estava lá e atendeu; eu perguntava quem era e ela, tão mãe-coruja quanto simpática, respondia: “É a mãe do Rey!” Comentei sobre isso com o filhão e acrescentei: “Se ela é a mãe do Rey, então é a Rainha-Mãe!” Ele e ela gostaram tanto que, quando ela faleceu, Rey homenageou-a em sua coluna na revista On & Off dizendo: “A Rainha-Mãe se foi.”
PARCERIAS REAIS
Tive a honra e prazer de trabalhar com Leopoldo em muitas de minhas atividades: jornalista, radialista, produtor de eventos e até jurado de festival – além, é claro, de participar de seu programa de rádio e vice-versa.
O meu primeiro contato de que me lembro com Rey foi exatamente em 2 de agosto de 1984, quando toquei com uma de minhas bandas, Galileu, no saudoso bar Albergue, de propriedade do também saudoso Lelo Cadillac, da banda Coke-Luxe, na rua Rui Barbosa. Rey estava na plateia, e esta foi sua impressão do Galileu (uma canja de quatro canções (4) ): “Algumas letrinhas eu achei interessantes.” Mal sabia eu que dali a um ano e meio meu programa Rádio Matraca encontraria na FM 97 uma Pasárgada e lá eu seria vizinho e amigo de Rey. (5)
Na virada dos anos 1980 para 1990 eu, já tendo me afirmado como jornalista, compositor, músico e radialista, arvorei-me em outra função: produtor de eventos, no Espaço Persona, onde praticamente residi de 1988 a 1993. Dois dos eventos que produzi no Persona, em parceria com Carmen Flores, cantora e proprietária do local, foram duas edições do Festival Persona de Música, e num deles Leopoldo Rey nos honrou como integrante do júri. E na mesma época, em março de 1990, eu e ele fomos jurados do quinto Festival de Música da ADC Eletropaulo; confiram estas amostras da cobertura do evento pelo tabloide da empresa, Notícias ADC Eletropaulo. (Leopoldo é o último à direita na foto; notem a presença de outras pessoas grandes parceiras, como o músico Johnny Boy.)
Trabalhámos juntos no Jornal da Tarde (6), de onde saímos em abril devido aos problemas financeiros causados pelo Terraplano C*ll**. Inclusive, participamos da cobertura do primeiro festival Hollywood Rock, em 1990. E segue abaixo uma pequena batalha de confete, tirada do JT de 11 de outubro de 1989 e da revista On & Off, edição 8, de 1993. (Sobre essa história de Aiatolá, explicarei no item seguinte.)
REAL HUMOR REAL
Ninguém
da FM 97 escapou da galhofeira Rádio Matraca em nossos quase dois anos na emissora. Sidnei Moreno Lopes, mais que excelente imitador – do nível de um Geraldo
Alves, com todo o respeito às novas gerações – , era um camaleão, e ele glosou
Leopoldo Rey e seu programa Momento Do Rock como “Leopardo Gay e o Momento do
Loki”. Rey, ele mesmo bem humorado, divertia-se com as gozações e as revidava.
O Momento Do Rock era um programete onde Rey mencionava e comentava alguma data
importante na história do rock e tocava uma gravação pertinente. Um dia Rey
visitou uma gravação da Rádio Matraca e acabou participando; Sidnei começou a
imita-lo inventando na hora uma data como “em 26 de julho de 1865”, e Rey
atalhou: “Morreu a mãe do Sidnei!” Laert Sarrumor, pego de surpresa, até chamou
o intervalo antes da hora... O programa foi ao ar no sábado seguinte e ninguém
se divertiu mais do que, adivinhem, a mãe de Sidnei Lopes, que, muito viva e muito
bem, veio nos dizer “então vocês me mataram!” Realmente, chiste trocado não dói...
Um belo dia apareci na 97 com cabelo curto, barba grande e roupa escura, e, mal cheguei, Rey disparou: “Olha o aiatolá!” Sim, era época de mais um entre tantos lideres detestavelmente radicais e extremistas, o Aiatolá Khomeini. Então eu mesmo aproveitei a deixa: “Aiatolá Mugnaini!” E Rey e outras pessoas na 97 seguiram me chamando de Aiatolá mesmo anos após eu ter saído da emissora, em 1989. O jeitão de adorável rabugento bem-humorado era excelente assunto para desenhos como este logo acima que fiz em 1994 para a revista Dynamite, inclusive trocadilhando com o filme disneyano O Rei Leão. No ano seguinte compus um tema no estilo NWOBrHM (New Wave Of Brega Heavy Metal), “Reyclamão”, e a primeira reação de Rey foi: “Pô, Ayrton, pára de falar que eu só reclamo, minha família já está me enchendo o saco!”
E QUEM é REY NUNCA PERDE A MAJESTADE
Sei
que esta breve recolha é apenas uma amostra da obra de Leopoldo Rey, mas muito
mais pode ser lido em locais como Maquiavelli, Olhar Dinâmico, Startrips e um dedicado ao proprio.
E desde já me candidato a escrever um livro sobre nosso velho homem do rock em Atibaia e no mundo. “Brincadeira?!”
(1) Num belo exemplo de “supercompensação” e de “antes tarde do que nunca”, os primeiros sucessos dos Kinks, quase todos inéditos no Brasil, deixaram de sê-lo 25 anos depois, e em dose dupla: o ano de 1989 começou e terminou com nada menos que duas coletâneas brasílicas da banda, esta From 67 At 70, lançada em março, e uma Greatest Hits da RGE, em setembro. A primeira nasceu de licenciamento das gravações da Movieplay portuguesa para a Brasidisc (que, para idealizar o titulo em inglês, fez um acordo não intencional com Tarzan, disso nosso querido Leopoldo Rey não teve culpa, embora ele mesmo tenha escrito erroneamente o sobrenome do contrabaixista original dos Kinks, Pete Quaife, como “Quaiffe”); já a RGE havia obtido licença diretamente da gravadora inglesa PRT, então a detentora destes fonogramas. Curioso é estas duas coletâneas totalizarem 25 faixas mas terem apenas oito em comum, nenhuma sendo “Apeman”, falha de ambas as coletâneas, e a RGE se esqueceu ainda de outro grande hit, “Tired Of Waiting For You”...
(2) O Made In Brazil lançou simultaneamente dois LPs ao vivo, Pirata I e Pirata II, reunidos num CD simples, intitulado simplesmente Pirata, em 1997 – e desta vez creditando “Mexa-Se, Boy” como versão de “Mannish Boy”.
(3) Pois é... Quantas pessoas brasileiras demonstram tamanho orgulho de celebridades suas conterrâneas antes de nestas ficarem procurando e enfatizando erros ou defeitos?
(4) A formação do Galileu nesse show era Fabian Chacur, vocal; Wagner Amorosino, teclado, violão e vocal; "Lord" Mauricio Bardella, contrabaixo; Ademir "Bonitão" Benedicto, bateria; e Ayrton Mugnaini Jr., arranjos, guitarra e vocal. Essa canja foi gravada, e uma amostra vai aqui.
(5) E "o bom filho à casa torna"; surgido na USP FM em 1985, o programa Radio Matraca passou pelas FMs 97 e Gazeta, voltando à USP em 1997 - pois é, a volta pode comemorar jubileu de prata.
(6) O que falta para o lançamento digital do acervo do Jornal da Tarde e, por sinal, da Folha da Tarde?
1 Comments:
Belíssima homenagem ao grande Leopoldo Rey, parabéns!
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