Poucos pretextos para falar de algo são melhores do que efemérides, e de repente percebi um assunto tão interessante para mim quanto cheio delas: a saga de Severa, a quase lendária fadista portuguesa e, ao que consta, criadora do fado moderno, que certamente exerce influência sobre Amália Rodrigues, Eugénia Melo e Castro, Dulce Pontes ou qualquer outra grande cantora portuguesa desde então.
A Severa, peça do escritor português Júlio Dantas (1876/1962) baseada na vida de Maria Severa, estreou há 110 anos, em 25 de janeiro de 1901 (e fez tanto sucesso que Dantas adaptou a peça para um romance no mesmo ano).
A Severa, primeiro filme sonoro português, estreou há 80 anos, em 18 de junho de 1931. E há 20 anos (mais exatamente, em dezembro de 1990) as gravações deste filme foram reeditadas pela primeira vez em LP, graças a Deus e ao selo brasileiro Evocação, fruto da iniciativa do colecionador Paulo Iabutti; vejam acima (clicando em cima com o ratão) uma resenha do disco que escrevi para a saudosa
Folha da Tarde em 7 de janeiro de 1991. (Severa foi Maria Severa Onofriana, 1820/1846 – sim, ela faleceu quase aos míticos 27 anos de Robert Johnson, Noel, Hendrix, Cobain, Winehouse e outros que nasceram para queimar a vela pelas duas pontas e brilhar muito.)
O LP
A Severa é discoteca básica para quem gosta de música dos anos 1930 para trás em geral e música portuguesa em particular. Quase todas as canções – fados em vários andamentos, viras, valsas e até pasodobles – fizeram grande sucesso e se tornaram clássicos da canção lusitana. Muitas receberam adaptações populares e até comerciais. Por exemplo, o corrido “Arraial De Santo António” foi usado em comerciais da caninha Tatuzinho e do Banco Português do Brasil (“são 50 anos de atividade/é a Caravela da Tranquilidade”), e “Solidó [sim, a palavra vem das notas musicais “sol-e-dó”] Dos Bolieiros” foi adaptada pelos músicos circenses Maurício Schumann, pai e filho, para encerrar as funções do Circo Nerino: “Está tudo acabado/Está tudo terminado/Os artistas estão cansados/Vão dormir/Amanhã tem outra vez/Se os senhores querem voltar/Seu Nerino fica contente/Em ver grande enchente...” (Seu Nerino era Nerino Avanzi, o palhaço Picolino, e também diretor do Circo Nerino. [2]) A marchinha “História do Brasil” de Lamartine Babo, sucesso de 1934, testemunha o grande sucesso do filme
A Severa no Brasil: “Pra cá tudo mudou/Passou-se o tempo da vovó/Quem manda é a Severa/E o cavalo Mossoró” [3]. E li num blog português não assinado sobre um jingle de sucesso no rádio local: “A Severa era uma louca/E para lhe adoçar a boca/O Conde, que era o António Luiz Lopes,/Comprava-lhe Drops.”
Exemplares originais de discos 78 RPM da trilha do filme
A Severa (eu possuo um) são mais fáceis de encontrar que filmes ou peças fiéis a obras ou fatos em que se baseiam; no caso d’
A Severa, nem mesmo o romance foi fiel à peça, quanto mais o filme – e poucos filmes tomaram tantas liberdades com o assunto quanto este. “
A Severa não é uma obra histórica, é um filme de sugestão tradicional”, resumiu o diretor do filme, Leitão de Barros. Para começar, o próprio Dantas, autor dos diálogos e consultor do roteiro, mudou a profissão original de Maria Severa de prostituta para "conhecida cigana" (assim diz o cartaz promocional do filme). E podemos escolher: Severa na peça original morre de um ataque cardíaco e ainda consegue se despedir cantando um fado (“eu quero morrer cantando/já que cantando nasci”); no romance ela sucumbe após violenta discussão com a mãe; e no filme seu fim é mais romântico, de ataque cardíaco nos braços de seu amante, o famoso Conde de Marialva. Achaste poucas estas mudanças? Pois bem: recente filme sobre determinado político brasileiro o mostrou como grande bebedor de cerveja e não cachaça como na realidade (mudança devida, segundo consta, a esse filme ser patrocinado por uma cervejaria), e o roteiro de
A Severa, feito pelo próprio Dantas, foi mais além: Severa aparece na peça e no filme como amante do Conde de Marialva, mas na vida real seu amásio nobre foi outro conde, Dom Francisco de Paula Portugal e Castro, Conde de Vimioso (1817/1865). Seus descendentes, ao saberem de que Dantas estava para levar a vida de Severa aos palcos, pediram a ele – por intermédio de ninguém menos que o Rei de Portugal! – que poupasse a família Vimioso da exposição pública do Conde como a pessoa folgazã e irresponsável que foi (ter sido amante de uma rameira foi o de menos). E Dantas acedeu, substituindo o Conde de Vimioso por Dom Pedro José Vito de Menezes Coutinho, o último Conde de Marialva, falecido em 1823. Sim, Maria Severa tinha apenas três anos de idade e portanto não poderia ter sido amante de Conde algum, mas esse detalhe só interessa a pesquisadores dinossauros e chatos como eu...
Aqui vai um bom fac-símile de uma edição de 1931 da peça
A Severa. E confiram o
texto do romance, numa digitação recente.
E o filme foi lançado em VHS em 1992 e já se tornou novamente raro, mas pode ser visto no Youtube.
(O filme
A Severa fez sucesso em vários países, até na Rússia, certamente por suas muitas qualidades como cinema, não pela capacidade de Dantas em fazer como o governo soviético e reescrever à vontade a História. Ah, sim: o atestado de óbito da verdadeira Severa dá a causa de sua morte como “congestão cerebral”.)
Dina Thereza (1902/1984), atriz e cantora que se celebrizou no papel principal do filme, e que começou a carreira usando seu verdadeiro nome, Dina Moreira, veio ao Brasil por ocasião do lançamento do filme, e gostou tanto do país que aqui se radicou. Aqui estão duas notícias sobre ela na
Folha de S. Paulo, uma de 24 de outubro de 1933 sobre uma apresentação na cidade de Santos e outra de 10 de outubro de 1967 sobre sua carreira (por algum motivo, esta reportagem de 1967 está disponível no acervo digitalizado da
Folha na internet com trechos ilegíveis, ao contrário da cópia xerox que recebi junto com o LP e que aqui reproduzo).
Tinhorão me disse que achava as canções d’
A Severa “bonitinhas” e que muito provavelmente foram adaptadas do folclore português. Bem, isso é verdade pelo menos no “Velho Fado da Severa”, do qual há uma gravação anterior ao filme, com título “Fado Que Cantava A Severa”, sem indicação de autoria, interpretada pela cantora Medina (sobre quem nada descobri até o momento) e lançada em algum ponto de 1907 a 1912. Pois é, o maestro e compositor Frederico de Freitas (1902/1980), autor da trilha do filme e creditado como autor desta e outras canções nele interpretadas, não poderia ter composto esta mais do que Severa poderia ter sido amante do Conde de Marialva...
O LP
A Severa é um belo exemplo de trabalho de amor, até na sequência de suas 12 faixas, a qual resolvi manter neste
"relançamentozinho" virtual com algumas faixas bônus, inclusive gravações da trilha do filme, com a própria Dina Thereza se acompanhando à guitarra portuguesa (se bem que em cinema nunca se sabe, ou ela toca bem ou dubla muito bem, mas competente em qualquer dos casos). Perdoem a qualidade sonora, embora as gravações sejam dos anos 1930 e até antes.
1 - Orquestra regida por José M. Lucchesi – A Severa (Seleção) (Frederico de Freitas) (Victor 34976-A)
2 - Dina Thereza - Vira (Frederico de Freitas - Julio Dantas) (Victor 34975-B)
3 – Orquestra Parisiense regida por Frederico de Freitas - Valsa do Filme
A Severa (Frederico de Freitas) (Victor 33028-A)
4 - Silvestre Alegrim - Solidó Dos Bolieiros (Frederico de Freitas - Julio Dantas) (Victor 34977-A)
5 - Dina Thereza - Velho Fado Da Severa (Frederico de Freitas - Julio Dantas) (Victor 34978-A)
6 - Dina Thereza - Novo Fado Da Severa (Frederico de Freitas - Julio Dantas) (Victor 34978-B)
7 - Orquestra regida por José M. Lucchesi – A Severa (Marchas Da Tourada) - pasodoble (Frederico de Freitas) (Victor, 34976-B)
8 – Maria Sampaio - Arraial De Santo António (Frederico de Freitas - Julio Dantas) (Victor 34977-B)
9 - Dina Thereza - Na Taberna/Fado Da Espera De Toiros (Frederico de Freitas - Julio Dantas) (Victor 34973-A)
10 – António Fagim com coro - Canção Do Romão (Frederico de Freitas - Julio Dantas) (Victor 33028-B)
11 - Maria Isabel - Canção Da Chica (Frederico de Freitas - Julio Dantas) (Victor 34978-B)
12 - Dina Thereza - Canção Da Severa (da revista
Ai-Ló) (António Melo - Frederico de Freitas) (Victor 34973-B)
13 - Dina Thereza - Feira d'Alcântara (fado-canção da revista
Ai-Ló) (António Melo - Frederico de Freitas) (Victor 34901-B)
14 - Dina Thereza - O Garoto (Victor 34901-A)
15 - Frederico de Freitas - Hino Da Carta (da trilha do filme)
16 - Dina Thereza - Velho Fado Da Severa - versão do filme (Frederico de Freitas - Julio Dantas)
17 - Dina Thereza - Novo Fado Da Severa - versão do filme (Frederico de Freitas - Julio Dantas)
18 - Frederico de Freitas - Valsa do Filme
A Severa - versão do filme (Frederico de Freitas)
19 - Frederico de Freitas - Novo Fado Da Severa – segunda versão do filme (Frederico de Freitas - Julio Dantas)
20 - Silvestre Alegrim - Fado Do Timpanas (Solidó Dos Bolieiros) - versão do filme (Frederico de Freitas - Julio Dantas)
21 - Dina Thereza - Canção Da Chica (versão do filme) (Frederico de Freitas - Julio Dantas)
22 - Medina - Fado Que Cantava A Severa (sem autoria) (Victor Record 98621, gravação mecânica, um só lado)
E informática serve para isso: leia muito mais sobre o assunto num blogue português intitulado justamente
O Blogue Da Severa.
[1] Sim, pasodobles, influência inescapável e benéfica - ao contrário da tourada, claro - da vizinha Espanha, exatamente como guarânia paraguaia no Brasil e nosso tanguinho ajudando na formação do tango argentino; temos também violino cigano e influência das “jazz-bands” estadunidenses - atenção para o banjo em algumas faixas.
[2] Peguei esta informação do belo livro
Circo Nerino escrito por Roger Avanzi (o palhaço Picolino 2, filho de Nerino Avanzi) e Verônica Tamaoki; lá falta apenas o título da canção d'
A Severa.
[3] Mossoró, outro destaque na letra desta marchinha, foi um dos primeiros cavalos campeões do turfe brasileiro.