TEXTOS COM TECLA SAP: "TOUJOURS TRISTESSE" DE JEAN KERR
First in Portuguese and then in English:
Desta vez exercitarei meus dotes tradutivos a serviço da
escritora estadunidense Jean Kerr (1922/2003), mestra do bom humor e
infelizmente ainda um tanto desconhecida no Brasil. Eu a descobri no início
deste século, quando fui encontrado num sebo por um exemplar de seu livro
Please Don’t Eat The Daisies. Li, gostei e googlei para mais detalhes,
descobrindo que o livro é de minha safra, 1957, e foi um tremendo best-seller
nos EUA, chegando a inspirar um filme estrelando Doris Day e David Niven e uma
série de televisão. O filme, de 1960, foi exibido aqui (com título Já Fomos Tão
Felizes) mas o livro não foi traduzido no Brasil, país onde de Jane Kerr se conhece
pouco além da peça Mary, Mary, estreada em 1961 – o maior sucesso não musical
da Broadway nos anos 1960 – e encenada aqui em 1963, traduzida por Millôr
Fernandes (tão bom tradutor que, como dizia o Casseta & Planeta, traduzia
até Paulo Francis em sua fase autocaricatural, os anos 1980 e 1990, para o
português) e estrelando Fernanda Montenegro e Leonardo Villar, também com
sucesso.
Correio da Manhã, 26 de novembro de 1963.
Please Don’t Eat The Daisies é uma coletânea de textos
publicados de 1954 e 1957, em sua maioria baseados na vida real de Jean Kerr, casada
com um dramaturgo e mãe de quatro filhos, dois dos quais gêmeos, além de sátiras
a outros gêneros, como romance policial (“Don Brown’s Body”) e o existencialismo
(“Toujours Tristesse”). Algumas amostras:
Dedicatória: “À pessoa minha crítica mais rigorosa.”
“Não se pode dormir até o meio-dia com prazer exceto
se houver um motivo real para ficar de pé até as três (festas não contam).”
“Um(a) crítico(a) de teatro leva uma vida ideal, ou
levaria, se não tivesse de assistir a tantas peças.”
“Eu e meu marido tomamos muito cuidado com nossos
filhos. Eles nunca irão precisar pagar psiquiatra para saber por que nós os
rejeitamos. Nós vamos contar a eles por que os rejeitamos. É porque eles são impossíveis.”
“Eu ainda estava na cabine telefônica quando o
telefone tocou. Intuitivamente, atendi. Era o assassino. Ele riu de mim. Só
isso. Riu de mim. Então deixei de ser um homem. Virei uma coisa feia. Tive
vontade de pegar o crânio dele com as duas mãos e esmagá-lo como se fosse um
melão. Quis bater naquela cara como se fosse uma omelete. Quis bater nele até
seu sangue escorrer escuro como café. Foi aí que eu me toquei: desde que
acordei eu ainda não tinha comido nada.”
O primeiro texto (sim, gostei tanto do livro que trarei
outros textos) é “Toujours Tristesse”, sátira ao rebelde e pirracento existencialismo
francês a partir do romance Un Certain Sourire de Françoise Sagan (1935/2004),
lançado em 1956 e traduzido no Brasil (Um Certo Sorriso) – sim, o titulo
satiriza o mais conhecido livro de Sagan, Bom Dia, Tristeza.
TODO DIA TRISTEZA
após ler Um Certo Sorriso de Françoise Sagan
Jean
Kerr
Tradução
de Ayrton Mugnaini Jr.
Eu estava esperando Banal. Eu me sentia um pouco
entediada. Era um dia de verão como qualquer outro, exceto pelo granizo. Atravessei
a rua. De repente, fiquei muito feliz, tive uma intuição avassaladora de que um
dia eu estaria morta. Estes olhos grandes, este corpo de criança magrela haveriam
de ser entregues à doce Terra. Tudo falava disso: o corrupio solitário de um
pombo sozinho no céu, o imponente bong bong bong dos sinos da catedral, a
buzina estridente do ônibus que roçou minha coxa.
Entrei no café, mas Banal estava atrasado. Fiquei feliz
ao perceber que esse simples fato me irritava.
Banal e eu éramos colegas de classe. Nossos olhos se
encontraram, nossos corpos se encontraram, e então alguém nos apresentou. Agora
ele era minha propriedade, e eu conhecia cada centímetro daquele corpo marrom tão
bem quanto você conhece a própria entrada de sua casa.
Um estranho do outro lado do banco falou.
"Monique, o que é que você está olhando, menina
boba?"
Era Banal. Curioso eu não o ter reconhecido. De
repente eu percebi o porquê. Um olhar revoltante de alegria torcia e distorcia
aqueles jovens e amados traços até parecer que ele estava realmente sorrindo.
Eu não conseguia olhar. Virei minha cabeça, mas sua
voz me seguiu, humildemente e à distância como um Cocker Spaniel.
"Monique, por que você matou a aula? Estudámos a
Crítica da Razão Pura. Foi interessante, mas acho que Kant proporciona uma
falsa dicotomia. A única solução viável é fornecer uma síntese pela qual a
experiência esteja impregnada de racionalidade e a razão esteja ordenada para
dados empíricos ".
Só mesmo Banal para dizer assim o óbvio. Às vezes,
sentada ouvindo Banal e seus companheiros trocarem petulâncias, eu sentia o
tédio crescer e inchar dentro de mim quase como se eu tivesse engolido uma bola
de praia.
Por que precisamos conversar sem proveito e sem fim
sobre filosofia e política? Confesso que só me interesso por perguntas que
tocam o coração de outro ser humano, "Com quem você está indo pra cama?";
"O que você toma para alívio imediato quando tem indigestão?"
A voz de Banal soava como um coro de cigarras num dia
quente até que finalmente apareceu uma declaração que eu não podia ignorar.
"Monique, quero que conheça meu avô, Anatole. Meu
avô rico."
Um homem pequeno e curvado veio em minha direção. Ele
não era mais de meia-idade, mas gostei. Eu estava tão cansada desses garotos
ansiosos de cinquenta anos. Seu cabelo, branco esverdeado, poderia chegar a ser
desagradável se dele houvesse mais. Enquanto ele sorria gentilmente, mostrando
seus dentes pequenos, uniformes e escuros, pensei: "Ah, ele é do tipo que
é louco por garotinhas". De fato, eu não tinha lido em algum lugar que ele
tinha tido algum problema com a polícia?
Mas agora, quando seus olhos opacos olhavam
diretamente nos meus e eu o notei batendo de leve com um fósforo na toalha de
mesa, percebi com uma repentina pontada de alegria que finalmente havia encontrado
um homem tão entediado quanto eu.
E, no entanto, lembrei-me muito bem, enquanto meu
coração voltava à Terra, isso não vai durar. Isso não pode durar. Ele nem
sempre estará entediado.
Então Banal falou, do seu jeito infantil.
"Vocês acreditam que Monique nunca viu o
mar?"
Então uma mulher falou. Esposa de Anatole. Ela estava
sentada ao lado dele, mas eu não a havia notado porque ela estava usando um
vestido marrom que se fundia com a parede da cabine. Sua voz era quente, como
uma carícia.
“Mas é horrível que essa pobre criança nunca tenha
visto o mar. Anatole, querido, você precisa levá-la ao nosso pequeno chatô à
beira-mar. Não poderei ir porque estou redecorando a casa da cidade. Há muita
comida na geladeira, e Monique poderá ver o oceano a partir do quarto. Aqui
estão as chaves.”
Isso me fez gostar dela.
Daí o casal foi embora. Dorette, pois esse era o nome
da esposa de Anatole, havia esquecido suas luvas, e admito que senti uma
pontada de ciúmes ao notar o jeito íntimo como Anatole as jogou para ela.
Então Banal e eu ficámos a sós. Como eu suspeitava,
Banal estava tempestuoso e cheio de suspeitas. Como eu o odiava quando ele ficava
assim. Ele continuou me perguntando repetidamente: "Tem certeza, Monique,
tem mesmo certeza de nunca ter visto o mar?"
Mas quando eu lhe assegurei, o que era verdade, que eu
nunca tinha, ele pareceu consolado e tornou-se mais uma vez o jovem ensolarado,
sorridente e bonito que eu achava tão repulsivo.
Estávamos no carro aberto de Anatole. No céu, o céu
estava azul como uma contusão.
A estrada branca e reluzente deslizando sob nossas
rodas parecia uma fita de algodão doce. Quando percebi que estávamos nos
aproximando do chatô, meu coração deu uma pirueta, rápida e ordenadamente, como
uma panqueca na chapa.
A voz de Anatole parecia vir de uma grande
distância.
"Entediada, querida?"
Eu me virei para ele.
"Claro, e você?"
Seu sorriso de resposta me disse que sim.
E agora estávamos subindo os longos degraus para o
castelo de mãos dadas como duas crianças felizes, parando apenas quando Anatole
tinha que recuperar o fôlego.
Na porta, ele parou e me pegou em seus braços. Sua
voz, quando falou, era como uma melodia tocada docemente e afinada.
“Minha querida", disse ele, “espero ter deixado
perfeitamente claro que, no que me diz respeito, você é apenas mais uma conquista."
"Claro", sussurrei. Quão adulto ele era, e
quão indescritivelmente querido.
Então os dias dourados passaram. Na maior parte do
tempo, ficávamos em silêncio, mas de vez em quando nos sentávamos ao crepúsculo
e conversávamos melancolicamente sobre Dorette e Banal e que idiotas ele e ela
eram.
E quem poderia descrever aquelas noites? Nunca em meu
relacionamento com Banal senti algo assim. Ah, como é gratificante repartir a
cama com um homem realmente maduro. Havia, por exemplo, o ruído e a excitação
quatro vezes por noite, quando ele pulava da cama e pisava o chão, num esforço
para manter ativa a circulação. Meu apelidinho carinhoso para ele era Pisador.
O último dia amanheceu frio e brilhante como uma
estrela. Anatole estava me esperando no carro, então arrumei meus poucos
pertences, passei uma lixa de unha nos meus cachos e me juntei a ele.
O que posso dizer da dor daquele passeio de volta a
Paris? Num certo sentido, eu e ele estávamos exatamente sentindo o mesmo tédio
de sempre. No entanto, desta vez, não era um tédio compartilhado.
Parámos na porta de minha casa e aí veio o golpe.
"Monique", disse ele, "minha pequena.
Fiquei entediado com você. Ninguém pode tirar isso de nós. Mas a verdade é que,
e sei como isso vai te magoar, fico ainda mais entediado com minha esposa. Vou
voltar para ela. "
Ele se foi. Fiquei sozinha. Sozinha, sozinha, sozinha.
Eu era uma mulher que amava um homem. Essa era uma história simples, até prosaica.
Mas eu sabia que, de algum modo, ela iria me render um livro.
And now the
English version:
This time I
will exercise my translating skills at the service of USA writer Jean Kerr
(1922/2003), a master of good humour and unfortunately still somewhat unknown
in Brazil. I discovered her at the beginning of this century, when I was found
in a second-hand book store by a copy of her Please Don’t Eat The Daisies book.
I read it, liked it and googleed for more details, discovering that the book is
from my vintage, 1957, and it was a tremendous bestseller in the USA, even
inspiring a film starring Doris Day and David Niven and a television series.
The 1960 film was shown here but the book was not translated in Brazil, where Jane
Kerr is scarcely known beyond the play Mary, Mary, premiered in 1961 -
Broadway's greatest non-musical success in the 1960s - and staged here in 1963,
starring Fernanda Montenegro and Leonardo Villar, also successfully.
Please Don't
Eat The Daisies is a collection of short stories published in various magazines
from 1954 and 1957, mostly based on Jean Kerr’s true life, married to a
playwright and mother of four, two of whom are twins, and satires to other genres,
like detective novels (“Don Brown's Body”) and existentialism (“Toujours
Tristesse”). Here are some samples from all over the book:
Dedication:
“For my severest critic”
“you
can't sleep until noon with the proper élan unless you have some legitimate reason
for staying up until three (parties don't count).”
“a
drama critic leads an ideal existence, or would if he didn't have to see so many
plays.”
“We
are being very careful with our children. They'll never have to pay a psychiatrist
twenty-five dollars an hour to find out why we rejected them, We’ll tell them why
we rejected them. Because they're impossible, that's why.”
“I
was still in the booth when the phone rang. On a hunch, I answered It. It was the
killer. He laughed at me. That was all. Laughed at me. I was no longer a man, I
was an ugly thing. I wanted to get his skull between my hands and crack it like
a cantaloupe. I wanted to scramble that face like a plate of eggs. I wanted to work
him over till his blood ran the color of coffee. That's when it came to me: I hadn't
had any breakfast.”
The
first story I bring (yes, I liked the book so much that I will bring others) is
“Toujours Tristesse”, a satire on French rebel and petulant existentialism from
the Un Certain Sourire novel by Françoise Sagan (1935/2004), released in 1956
and translated in the USA as A Certain Smile – of course, the title lampoons
Sagan’s most famous book, Bonjour Tristesse.
Illustration by Carl Rose from the book
TOUJOURS TRISTESSE
after reading
A Certain Smile by Françoise Sagan
Jean Kerr
I was waiting
for Banal. I was feeling rather bored. It was a summer day like any other,
except for the hail. I crossed the street. Suddenly I was wildly happy, I
had an overwhelming intuition that one day I would be dead. These large
eyes, this bony child's body would be consigned to the sweet earth.
Everything spoke of it: the lonely cooing of a solitary pigeon overhead, the
stately bong bong bong of the cathedral chimes, the loud horn of the
motorbus that grazed my thigh.
I slipped
into the café but Banal was late. I was pleased to notice that that simple
fact annoyed me.
Banal and I
were classmates. Our eyes had met, our bodies had met, and then someone
introduced us. Now he was my property, and I knew every inch of that
brown body the way you know your own driveway.
A stranger
across the booth spoke.
"Monique,
what are you staring at, silly girl?"
It was Banal.
Curious that I hadn't recognized him. Suddenly I knew why. A revolting look of
cheerfulness had twisted and distorted those dear young features until
he seemed actually to be smiling.
I couldn't
look. I turned my head, but his voice followed me, humbly and at a
distance like a spaniel.
"Monique,
why did you skip class? We were studying the Critique of Pure Reason. It
was interesting, but I think Kant offers a false dichotomy. The only
viable solution is to provide a synthesis in which experience is
impregnated with rationality and reason is ordained to empirical
data."
How like
Banal to say the obvious. Sometimes as I sat and listened to Banal and his
companions trade flippancies, I could feel the boredom grow and swell
within me almost as if I had swallowed a beach ball.
Why must we
chatter fruitlessly and endlessly about philosophy and politics? I confess
that I am only interested in questions that touch the heart of another
human being "Who are you sleeping with?"; "What do you take
for quick relief from acid indigestion?".
Banal's voice
droned on like a chorus of cicadas on a hot day until finally there was a
statement I couldn't ignore.
"Monique,
I want you to meet my grandfather, Anatole. My rich grandfather."
A slight,
stooped man came toward me. He was no longer middle-aged, but I liked
that. I was so tired of these eager boys of fifty. His hair, which was
greenish white, might have been unpleasant had there been more of it. As
he smiled gently, showing his small, even, ecru teeth, I thought,
"Ah, he's the type that's mad for little girls." In fact, hadn't
I read that he'd had some trouble with the police?
But now, as
his dull eyes looked directly into mine and I noticed him idly striking a
match on the tablecloth, I realized with a sudden stab of joy that finally
I had met a man who was as bored as I was.
And yet, I
reminded myself firmly as my heart slid back to earth, this won't last. It
can't last. He won't always be this bored.
Now Banal was
speaking, in his infantile way.
"Do you
know Monique has never seen the sea?"
Then a woman
spoke. Anatole's wife. She was sitting beside him but I hadn't noticed her
because she was wearing a brown dress and blended into the back of the
booth. Her voice was warm, like a caress.
"Why,
that's awful that this poor child has never seen the sea. Anatole,
darling, you must take her to our little chateau by the ocean. I won't be
able to come because I'm redecorating the town house. But there is plenty
of food in the frigidaire, and Monique will be able to see the
ocean from the bedroom. Here are the keys.”
I liked her
for that.
Then they
were leaving. Dorette, for that was Anatole's wife's name, had forgotten
her gloves, and I admit I felt a pang of jealousy as I noticed the
intimate way that Anatole threw them to her.
Now Banal and
I were alone. As I suspected, Banal was stormy and full of suspicion. How
I hated him when he got this way. He kept asking me, again and again:
"Are you sure, Monique, are you really sure that you have never
seen the sea?"
But when I
assured him, what was the truth, that I never had, he seemed comforted and
became once more the sunny, smiling, handsome young man I found so
repellent.
We were in
Anatole's open car. Overhead the sky was blue as a bruise.
The gleaming
white road slipping under our wheels seemed like a ribbon of cotton candy.
As I realized we were nearing the chateau, my heart turned over once,
quickly and neatly, like a pancake on a griddle.
Anatole's
voice seemed to come from a great distance.
"Bored,
darling?"
I turned to
him.
"Of
course, and you?”
His answering
smile told me that he was.
And now we
were running up the long flight of steps to the chateau hand in hand like
two happy children, stopping only when Anatole had to recover his wind.
At the
doorway he paused and gathered me into his arms. His voice, when he spoke,
was like a melody pkyed sweetly and in tune.
*My
darling", he said, “I hope I have made it perfectly dear that so far
as I am concerned you are just another pickup."
"Of
course", I whispered. How adult he was, and how indescribably
dear.
So the golden
days passed. Mostly we were silent, but occasionally we sat in the
twilight and spoke wistfully of Dorette and Banal and what suckers they
were.
And who could
describe those nights? Never in my relationship with Banal had I felt anything
like this. Ah, how rewarding it is to share the bed of a really mature
man. For one thing, there was the clatter and the excitement
four times a night as he leaped to the floor and stamped on his feet
in an effort to get the circulation going. My little pet name for him,
now, was Thumper.
The last day
dawned cold and bright as a star. Anatole was waiting for me out in the
car, so I packed my few belongings, ran a nail file through my curls, and
joined him.
What shall I
say of the pain of that ride back to Paris? In one sense, we were, both of
us, precisely as weary as ever. Yet for the first time it wasn't a shared
weariness.
We pulled up
to my front door, and then the blow fell.
“Monique”, he
said, "little one. I have been bored with you. Nobody can take that
away from us. But the truth is, and I know how this will hurt you, I am
even more bored with my wife. I'm going back to her."
He was gone. I was alone. Alone, alone, alone. I
was a woman who had loved a man. It was a simple story, prosaic even.
And yet somehow I knew I could get a novel out of it.
TEXTOS COM TECLA SAP: "DILMA DE OLHOS NO CHÃO" DE ALDIR BLANC
First the English version, then the Portuguese one.
My first post on this blog in the coronavirus era (I hope they will be few, not because I produce less, which doesn't happen, but because I hope this era will end soon) honours one of his casualties: lyricist and writer Aldir Blanc. Here's one of his many beautiful short stories for O Pasquim newspaper, published in issue 355, on the 16th of April, 1976, and a good-humoured attack on machismo and submission; this and other short stories by Aldir Blanc were reunited in the book Rua Dos Artistas E Arredores ("Artist Street And Thereabouts"), published in 1978. (No, this short story's Dilma has nothing to do with the famous wind-stocking politician.)
DILMA WITH HER EYES ON THE FLOOR
Aldir Blanc
English translation by Ayrton Mugnaini Jr.
Fragoso had the cinema-like
security of falsely virtuous people. His exaggerated concern for elegance led
him to iron his linen suit so much that he couldn't even walk straight. His
friend Penteado, a tremendous joker, was always merciless:
- Jacket even harder than the proverbial wooden suit!
But Fragoso pretended he didn't hear any of that. He
fixed an imaginary fault in his tie knot and showed an affected giggle, just off
the left corner of his mouth.
Very unsympathetic, often provoked
unfavourable comments:
- His little mouth is worthy of a
hard punch!
- Well dressed... Perfumed...
I don't know... For me, this guy is a pansy of sorts.
Not so. Fragoso was no sissy. Stuck-up,
arrogant, that's what he was. That type of guy who thinks he is the BIGGEST, and works for a
BIGGER house, a BIGGER car, a BIGGER vacation, and ends his life in an
infirmary, arguing with his bedside neighbour about which one has the BIGGEST tumour.
Dilma, on the other hand, was simplicity
incarnated: she worked all day, a scarf on her head, shabby slippers. Fragoso,
rascal that he was, justified thus:
- What do I need a housemaid for?
Dilma loves housekeeping. She finds it fun. Right, my angel?
Dilma agreed, with her eyes on the
floor.
The other Artist Street dwellers
commented that Dilma's sadness was due to Fragoso's lack of respect. Always
very full of himself, he came home late, his voice sweetened by passion-fruit-laced
beverage, a rose of lipstick on his lapel. Dilma, her eyes on the floor, asked
quietly:
- Want dinner?
She was humiliated.
- I’ve had dinner already.
And he shouted from the bathroom:
- A man like me has to have
dinner out every now and then.
Dilma, with her eyes on the floor,
listened to the strong spurt of urine and felt very helpless.
If she went to the fortune
teller, she heard, sure enough:
- I see a brunette woman.
The following week, he returned,
a thread of hope crumpled within the lace scarf:
- I see a blonde woman.
As soon as she came back home, he
saw the letter on the floor.
When she answered the phone,
disguised voices whispered:
- Your husband has another woman at
the Engenho Novo district.
- Here is a friend who doesn't
want to see you playing this role.
Neighbours gave advice:
- Put on a decent attire! Treat
yourself right, woman!
- Stop being a fool! Get yourself
another man too!
Dilma, with her eyes on the floor,
felt a frightening certainty increase: no one understood anything at all.
Once, out of curiosity rather than
hope, she went to a spiritualist centre at the Pereira Nunes district where
Heronda was acting as a medium. As soon as she entered, a pomba-gira spirit whistled
and, Heronda, shouting, pointed her crooked finger to Dilma:
- Thorn apple! Your
cakes shall always rise!
She wrote to the Ladies' Yearbook
asking for help. Famous columnist Colette replied in an unforgettable way:
"Consummation by fire is not
destruction but transformation. Trust and wait."
In gratitude, Dilma revealed to
the Yearbook her secret recipe for orange spongy cake. A most fêted delicacy,
not even my grandmother Noemia dared to compete with Dilma. So much so that, on
that Easter Sunday, Dilma came to the monumental meeting with her spongy cake:
- It's for the kids.
- You shouldn't have bothered,
dear.
Everyone noticed Fragoso's
absence, but nobody said a thing. Dilma herself, with her eyes on the floor,
explained quietly.
- He went to see a sick uncle at
Belford Roxo.
About five o’clock in the
afternoon, everyone was in the yard talking about guava, football, everything, the
most lively chat, when Fragoso appeared. He was undoubtedly drunk, stiff in his
starched linen suit, with that meticulous gestures of someone very inebriated. He
didn’t even address his wife. Soon he was filling a glass of beer without foam,
while saying:
- Today they told me a good joke... Do you keep the one about the parrot that hid in the toilet? Ha, ha...
There was a parrot that was crossed with his owner because she always left him out in the
cold. Then he... AAATCHOOOO!
Still laughing at the effect he
thought the joke would have, Fragoso, rather wobbly, reached into his jacket
pocket, took out a woman's panties and blew his nose vigorously on the delicate
underwear. There was a silence that rang in the ears. Fragoso, when he realised
his blunder, he laughed and, with the greatest cynicism, said
to Dilma:
- Do you know what happened, my
angel?... I couldn't find a handkerchief when I left home and, so as not to
wake you up, I took the first thing that...
The beer bottle hit the left
corner of the mouth, right on that giggle, and there were shards of teeth,
blood and broken glass everywhere.
Later, Dilma, with her eyes on
the floor, spoke quietly as always to my grandmother:
- What I put up with no one else would put up with... You know... But to say that I don't do my job was way too much.
The wardrobe’s drawer is always full of clean and ironed handkerchiefs. You can
go and see for yourself.
***
Agora em português:
Minha primeira publicação neste blogue na era do coronavírus (espero que sejam poucas, não por eu produzir menos, o que não ocorre, mas sim porque espero que esta era termine logo) homenageia uma de suas vítimas fatais: o letrista e escritor Aldir Blanc. Aqui vai uma das muitas e belas de suas crônicas para o jornal O Pasquim, publicada na edição 355, de 16 de abril de 1976, e uma bem-humorada critica ao machismo e à submissão; esta e outras crônicas de Aldir Blanc foram reunidas na coletânea Rua Dos Artistas E Arredores, publicada em 1978. (Não, a Dilma desta crônica nada tem a ver com a famosa política estocadora de vento.)
DILMA DE OLHOS NO CHÃO
Aldir Blanc
Fragoso tinha a cinematográfica segurança das pessoas
falsamente virtuosas. Sua exagerada preocupação com a elegância levava-o a
engomar tanto o terno de linho que nem dava pra andar direito. Penteado,
tremendo gozador, não perdoava:
- Paletó mais duro que esse só o de madeira!
Mas o Fragoso não se dava por achado. Ajeitava um
imaginário defeito no nó da gravata e exibia um risinho afetado, só no canto
esquerdo da boca.
Bastante antipático, não raro provocava comentários
desfavoráveis:
- Ô boquinha boa pra sentar um murro!
- Arrumadinho. . . Perfumado... Sei não... Pra mim,
esse cara é chegado a um quibe cru.
Exagero. Fragoso não tinha nada de boneca. Era metido
a besta, isso sim. Desse tipo de cara que se acha o MAIOR, e trabalha por uma
casa MAIOR, um carro MAIOR, um período de férias MAIOR, e termina a vida numa
enfermaria, discutindo com o vizinho de leito quem é que tem o câncer MAIOR.
Já a Dilma era uma simplicidade: trabalhava o dia
todo, pano na cabeça, chinelinho surrado. O calhorda do Fragoso justificava:
- Empregada pra quê? Dilma adora o serviço de casa.
Pra ela é diversão. Né, meu anjo?
Dilma concordava, de olhos no chão.
As comadres da Rua dos Artistas comentavam que a
tristeza da Dilma era pela falta de respeito do Fragoso. Prosa como ele só,
chegava em casa tarde, a voz adocicada pelas batidas de maracujá, uma rosa de
batom na lapela. Dilma, de olhos no chão, perguntava baixinho:
- Quer jantar?
Era humilhada.
- Já comi.
E gritava do banheiro:
- Um homem como eu tem que comer fora de vez em
quando.
Dilma, de olhos no chão, escutava o jorro forte da
urina e sentia um grande desamparo.
Se ia na cartomante, era batata:
- Vejo uma mulher morena.
Na semana seguinte, voltava, um fio de esperança
amassado no lencinho de renda:
- Vejo uma mulher loura.
Mal entrava em casa, via a carta no chão.
Se atendia o telefone, vozes disfarçadas sussurravam:
- Teu marido tem outra no Engenho Novo.
- Aqui é uma amiga que não quer te ver fazendo esse
papel.
Vizinhas davam conselhos:
- Bota uma roupa decente! Te trata, mulher!
- Deixa de ser boba! Arranja um você também!
Dilma, de olhos no chão, sentia aumentar uma certeza
assustadora: ninguém compreendia nada de nada.
Uma vez, mais por curiosidade do que por esperança,
foi a um centro na Pereira Nunes onde a Heronda se desenvolvia. Assim que
entrou, uma pomba-gira deu de assobiar, e, gritando, apontava em sua direção o
dedo torto:
- Figueira do diabo! Tu nunca vai fazer bolo solado!
Escreveu para o Anuário das Senhoras pedindo auxílio.
A famosa Colette respondeu de forma inesquecível:
"A consumação pelo fogo não representa destruição
e sim transformação. Confie e espere".
Em agradecimento, Dilma revelou ao Anuário sua receita
secreta de pão-de-ló de laranja. Doce festejadíssimo, nem mesmo minha avó
Noêmia se atrevia a competir com a Dilma. Tanto assim que, naquele domingo de
Páscoa, Dilma veio para o monumental cozido munida do seu pão-de-ló:
- É pras crianças.
- Não precisava se incomodar, querida.
Todo mundo reparou na ausência do Fragoso, mas ninguém
disse bulhufas. A própria Dilma, de olhos no chão, explicou baixinho.
- Foi ver um tio doente em Belford Roxo.
Lá pelas cinco da tarde, tava todo mundo no quintal
falando de goiaba, futebol, o maior papo, quando surgiu o Fragoso. Vinha
indiscutivelmente bêbado, duro dentro do terno de linho engomado, com aquela
meticulosidade de gestos de quem tá com a cisterna cheia. Nem se dirigiu à
esposa. Foi logo enchendo cuidadosamente um copo de cerveja sem espuma,
enquanto dizia:
- Hoje me contaram uma boa. . . Cês manjam a do
papagaio que se escondeu na privada? He, he... Tinha um papagaio que tava por
conta com a dona que deixava ele no sereno. Aí, ele fez o seguinte...
AAATCHIMMMMM!
Ainda rindo do efeito que a piada causaria, Fragoso,
meio bambo, meteu a mão no bolso do paletó, tirou de lá uma calcinha de mulher
e assoou vigorosamente o nariz na delicada peça íntima. Fez-se um silêncio que
chegava a zunir nos ouvidos. Fragoso, quando viu a mancada, armou seu risinho
afetado e, com o maior cinismo, disse pra Dilma:
- Sabe o que foi, meu anjo?... Não achei lenço na hora
de sair e, pra não te acordar, peguei a primeira coisa que...
A garrafa de cerveja acertou bem no cantinho esquerdo
da boca, bem no risinho e foi pedaço de dente, sangue e caco de vidro pra todo
lado.
Mais tarde, Dilma, de olhos no chão, falava baixinho
como sempre pra minha vó:
- O que eu aturei ninguém aturava... A senhora sabe...
Mas dizer que eu não faço o meu trabalho, isso não. A gaveta do camiseiro tá
cheia de lenço limpo passado a ferro. A senhora pode ir lá ver.