MINI BLOGUE DO BIG MUG
Wednesday, April 27, 2016
Um de
meus grandes orgulhos e júbilos (gostaram?) é a dupla que formei em 2015 com
Verônica Tamaoki, notória e emérita pesquisadora e artista circense que está se
revelando como cantora. Eu manobro o violão e os arranjos, e ela escolhe as
canções que mais lhe tocam. Num dos ensaios mais recentes ela acrescentou ao
repertório “Quando Te Vi”, que a maioria das pessoas que cresceram no Brasil nos anos
1970 e 1980 conhece como “versão cantada por Beto Guedes para uma canção dos
Beatles”, no caso “Till There Was You”, lançada na Inglaterra em 1963 e no
Brasil dois anos mais tarde. Aqui estão as formas onde muitos e muitas de nós conheceram a gravação dos Beatles (em sua primeira edição brasílica) e a versão cantada por Beto Guedes (em seu LP Viagem Das Mãos, de 1985).
Só que esta bela canção surpreende com novos
pormenores a cada vez que se lhe examina (gostaram de novo?). Sim, esta versão foi
lançada por Beto Guedes, mas a autoria é de Ronaldo Bastos. Não, a
composição não é dos Beatles, e sim do pianista e compositor estadunidense
Meredith Wilson (1902/1984). E antes de ser transformada em bolero-rock liverpudliano a
canção já havia se tornado um clássico pop (por "pop" entenda-se música popular comercial, seja rock ou outro ritmo, não um mero sinônimo de rock como diz muita gente boa), inclusive na Broadway e no cinema –
e com versões mais “rock” que a dos Beatles. Vejamos.
Uma primeira pesquisa nos diz que “Till There Was You” nasceu como um dos temas do musical da Broadway The
Music Man, sobre um “músico” picareta dos anos 1910 que vai de cidade em cidade
oferecendo aulas de música para crianças, cobrando adiantado de pais & mães
e fugindo com a grana, até que um dia se apaixona por uma dama local e reluta
em continuar fugindo... The Music Man estreou em 1957; a gravadora
Capitol pôs tanta fé neste musical que lançou algumas de suas canções em discos
antes mesmo da estréia na Broadway; uma das escolhidas foi justamente “Till There Was
You”, com a jovem cantora Sue Raney (17 anos de idade) acompanhada pela
orquestra do grande Nelson Riddle. O disco saiu em 26 de novembro de 1957,
quase dois meses antes do álbum com o elenco da peça, no dia 20 de janeiro
seguinte. Ouçam aqui a gravação de Sue Raney. E confiram abaixo dois recortes da revista Billboard de 11 e 25 de novembro de 1957 comentando e divulgando o disco.
Na peça, “Till There Was You” foi cantada pela atriz Barbara Cook –
sim, esta interpretação é uma dádiva para quem gosta de musicais com vozeirão
empostado na linha de A Noviça Rebelde. Confiram aqui. E a confiança da gravadora Capitol em The
Music Man revelou-se plenamente justificada; o musical fez tanto sucesso – inclusive rendendo para o LP correspondente o primeiro Grammy para uma trilha teatral – que a
Capitol lançou também a trilha sonora da versão filmada, em 1962. Mal sabia a Capitol que em 1964 ela iria lançar nos EUA a versão de maior sucesso
de “TTWY” – sim, a dos Beatles, que até se tornou, segundo a viúva de Meredith
Wilson, de longe a maior fonte de renda do maridão.
Entre a gravação de Barbara Cook
e a dos Beatles, “TTWY” tornou-se, como dissemos, um clássico da música pop,
regravada por muitos artistas, incluindo Peggy Lee, Sonny Rollins, Al Hirt e
Sergio Franchi, e a versão rock pioneira a que me referi foi com a cantora
Anita Bryant em 1959 - uma balada-rock em compasso 12/8 na linha de “Only You”, “Come
Prima” e outras. Ouça esta gravação aqui e deguste abaixo os selos da primeira edição e de uma rara versão em compacto estéreo.
“Quando Te Vi” fez grande sucesso,
mas não foi a primeira versão brasílica de “TTWY”. Há pelo menos uma
precedente, “Não Há Você”, escrita pelo radialista Waldyr Santos e gravada pelos Incríveis (ouça aqui) exatamente 20 anos antes, em 1965, no seu último LP (sem título) com o contrabaixista original, Neno, e
ainda na primeira gravadora da banda, a Continental (onde o grupo gravou até 1967). Uma das outras faixas deste álbum
é a primeira das duas gravações que a banda fez de “O Milionário” (“The Millionaire”) da banda
inglesa The Dakotas; a segunda foi feita em
1968 para outra gravadora, a RCA, e fez tanto sucesso que em 1970 a Continental
não teve dúvida em pegar carona, relançando o LP de 1965 com título O Milionário – só que
substituindo a (toscaça) capa original pela capa do álbum seguinte da banda, de 1966, também
sem título mas o primeiro com o contrabaixista Neno substituído por Nenê (muita
gente boa confunde os apelidos de ambos e há até quem pense serem eles uma mesma e única pessoa!). Esta edição com capa trocada/errada é a
mais comum e a mais reeditada, inclusive em CD; meu exemplar é da reedição
econômica de 1982, e autografado para mim pela formação clássica dos Incríveis (Manito, Mingo, Nenê, Netinho e Risonho) em um de seus
últimos shows juntos, na casa paulistana Tom Brasil em 1996. Eu não sabia ainda que Nenê
aparecia na capa mas não tocava no disco – o LP de 1965 é dos mais raros da
banda e só consegui minha cópia anos depois – , nem mesmo quando a Continental (então já adquirida pela Warner Music) me chamou para escrever o release da primeira edição do álbum em CD, em 1994; Nenê foi
tão gentil que elogiou meu release mas esperou alguns anos para me esclarecer o caso, dizendo inclusive que estava processando a gravadora pela confusão.
Este é o LP onde surgiu a versão de "Till There Was You" gravada pelos Incríveis.
Ainda
no quesito rock brasileiro dos anos 1960 com relação a “Till There Was You”, vale a pena garimpar 12 Maravilhas,
LP de 1968 da banda carioca Os Santos, aquela formada por Euclides dos The Pop's e que
acompanhou Ronnie Von em seu primeiro disco, “Meu Bem”. O álbum 12 Maravilhas reúne uma dúzia de sucessos da velha guarda da MPB arranjadas como
rock instrumental. Citei aqui este disco para vocês procurarem o solo criado e executado por George
Harrison para “Till There Was You” no meio da interpretação dos Santos de “Jamais Te
Esquecerei”, samba-canção do grande violonista Antonio Rago; ouçam aqui. E segue abaixo a capa do LP.
Após o sucesso na
Broadway, The Music Man chegou a Hollywood, como dissemos, e o filme saiu em
junho de 1962; “TTWY” foi entoada por Shirley Jones; ouçam aqui. (Se o nome e a imagem de
Shirley Jones soam familiares, há motivo: ela começou os anos 1970 atuando no
seriado The Partridge Family/A Família Dó-Ré-Mi – interessante é a sátira deste seriado feita pela
revista Mad dizer que Shirley nunca ergueu a voz “acima de um monocórdio”.). O
filme foi exibido no Brasil em 1963 com título O Vendedor
de Ilusões – sim, encamparam o título da peça de Oduvaldo Vianna lançada com sucesso
em 1931 celebrizada por Procópio Ferreira e para a qual o famoso “Monólogo das
Mãos” está como o “Ser Ou Não Ser” está para Hamlet de Shakespeare. (Pois é, o
título brasileiro dado a este filme prova que a gravadora Continental não
esteve sozinha em agir primeiro e pensar depois, e bons títulos de peças e
filmes não costumam ser usados apenas uma vez...)
Ah!
Mais uma surpresa: a gravação original de “TTWY” não é a de Sue Raney e sim da
cantora Eileen Willson (sem parentesco com Meredith), que lançou a canção em
1950 com título “Till I Met You” (não confundir com a balada homônima posterior
da banda inglesa The Searchers). Confiram aqui.
E,
para ainda mais júbilo (eu sabia que vocês haviam gostado) de quem estuda
música brasileira no circo, inclusive eu mesmo e Tamaoki-san, o título “Vendedor
De Ilusões” (sem o artigo dfinido) serviu também para uma marcha carnavalesca lançada em 1964 pelos palhaços
Arrelia e Pimentinha (ouçam aqui, com o perdão da baixa qualidade desta digitalização que consegui por ora); a letra
nada tem a ver com o filme The Music Man nem com a peça de Oduvaldo Vianna, mas cita periquitos que leem a sorte
(e que em tempos mais recentes estão deixando de ser confinados em gaiolinhas
de realejos), com direito a citação de outra canção que remete ao circo –
“Oh Minas Gerais”, a versão do grande palhaço-cantor Eduardo Das Neves para a canção
italiana “Vieni Sul Mar”...