Thursday, February 01, 2018

CASAGRANDE E MALOCA: BELO LANCE INICIAL DO PROJETO ADONIRANDO

“Até parece que eu sou Bach!” Assim exclamou Adoniran Barbosa ao ser redescoberto por gravadoras e grande imprensa na virada dos anos 1970 para 1980. Certamente, Adoniran teria gostado muito de ter ouvido sua música interpretada num espaço onde a comum das pessoas esperaria ouvir Bach: o Theatro Municipal de São Paulo, onde tivemos agora em 31 de janeiro o espetáculo Adonirando, inaugurando o megaprojeto Ano Adoniran, ao qual assisti e de que segue abaixo um breve relato. (Mais detalhes sobre o evento aqui e aqui.)

Isso mesmo, nada de elitismos. O Theatro Municipal não é lugar somente de “alta cultura” e “espetáculos chiques” – basta lembrar de Tonico e Tinoco se apresentando lá em 1979, tendo ainda sido precedidos por Moreno e Moreninho em 1954. Tampouco nada de arte com rótulos e compartimentos estanques. Um artista como Adoniran transcende seu gênero musical, mesmo quando se torna praticamente sinônimo dele; do mesmo modo que o citado Bach tem sido interpretado, citado e adaptado por artistas distantes da música erudita barroca como Vinícius de Moraes, Jessé, os Byrds e as Supremes, a obra de Adoniran vem sendo revisitada por artistas distantes do samba como Dominguinhos, Guilherme Arantes, Nhá Barbina, Little Quail & The Mad Birds e até pessoas estrangeiras como a banda italiana I Romans, o cantor israelita Matti Caspi e o cantor ítalo-cubano Don Marino Barreto Jr.


O projeto Adonirando é um dos mais espetaculares (inclusive literalmente) resultados da confluência de diversos esforços pró-Adoniran, incluindo o Conjunto João Rubinato (dedicado a resgatar a obra do artista), o livro de Celso Campos Jr. (primeiro grande livro sobre sua vida, Adoniran: Uma Biografia), o meu (primeira grande discografia e musicografia, Adoniran: Dá Licença De Contar), o de Tomás Bastian, líder do CJR, em parceria comigo (Adoniran Em Partitura) e o entusiasmo do ex-jogador Casagrande, grande fã de Adoniran (e também corintiano) e que teve a ideia de montar este show.

Muitas das atrações deste evento eram prazer musical anunciado e já esperado; outras foram semi-surpresas (já explicarei) e houve também surpresas tão inesperadas (ao menos para o grande público) quanto agradáveis (para o público em geral).

Eu já esperava gostar de ouvir Luiza Possi cantando “As Mariposa”; Baby do Brasil com “Saudosa Maloca” (inclusive imitando Elza Soares); Demônios da Garoa com um pot-pourri de “Malvina”, “Joga A Chave” e “Apaga O Fogo, Mané” e, como bis não programado, “Já Fui Uma Brasa”; Eduardo Gudin com “Armistício” (parceria sua com o vate do Bixiga); Carlinhos Vergueiro com “Torresmo À Milanesa” (idem); Paulinho Boca De Cantor (com “Minha Nêga”, na qual também tem parceria junto com Carlinhos Vergueiro); Toinho Melodia com “Comê E Coçá É Só Começá”; e o Conjunto João Rubinato, que acompanhou quase todo mundo, inclusive com participação do grande Osvaldinho da Cuíca. (Merecem destaque duas pessoas vocalistas do CJR, respectivamente Gregory Andreas com "Duas Horas Da Madrugada" e Soraia Ioti com "Teu Orgulho Acabou", duas das doze canções lançadas pela primeira vez em disco no CD que acompanha o livro Adoniran Em Partitura).

Das semi-surpresas, Arrigo Barnabé mostrou que não se resume ao Frank-Zappa-encontra-Gil-Gomes com que se celebrizou; lembremos que ele é também autor de belas canções como a valsa “Londrina”, e no evento Adonirando ele brilhou quase sozinho ao piano com “Bom Dia, Tristeza” (em boa dupla com o violonista Ronaldo Rayol). E já que Adoniran gostava “dos meninos desses tal de iê-iê-iê”, tivemos Paulo Miklos em pessoa e no telão em cenas do filme Dá Licença De Contar (sim, xará de meu livro, embora a frase seja de Adoniran), onde interpreta o papel do Poeta do Bixiga, e Nasi e Johnny Boy interpretando “Iracema”. (Por sinal, há alguns anos tive a honra e prazer de participar das interpretações de ambos em “Iracema” e “Samba Italiano” num especial sobre Adoniran para a TV Cultura.)

Ah, as surpresas... Todas, como eu disse, muito boas. Luiz Carlini, o “Keith Richards da Pompeia”, brincou de Jimi Hendrix com um breve arranjo instrumental sem acompanhamento do “Samba do Arnesto” à moda do mestre de Seattle, e deve ter surpreendido muita gente que não ouviu, por exemplo, Rita Lee interpretando a mesma canção no álbum-tributo Adoniran, O Poeta Do Bixiga em 1990. O diretor e ator teatral Cassio Scapin (sim, aquele do Castelo Rá-Tim-Bum) brilhou recitando-interpretando letras de canções como “Um Samba No Bixiga”, “O Samba Do Metrô” e “Olha A Polícia!” e cantando (bem) “Samba Italiano”. “Prova De Carinho” teve duas boas interpretações, com Kiko Zambianchi (sim, roqueiro que também é de samba, e que sabe que Adoniran também é do rock) e o tenor Jean William. Gostei de ouvir duas cantoras que eu não conhecia: Laya e... Sabrina Parlatore. Sim, a apresentadora, que foi “commère” deste evento e revelou que também pode seguir carreira de cantora com uma bela versão em fox-trot de “Tiro Ao Álvaro”. Rappin’ Hood saiu-se bem em “Saudosa Maloca” não só no belo rap que entoou, mas também cantando, apesar do pouco ensaio e do tom não ser o ideal para ele. E Hood cantou num belo dueto com Baby do Brasil – não, ela não disse “Rá!”, mas Hood disse “Rá-tá-tá-tá” imitando arma de fogo em seu rap. (Quando fui integrante do Magazine de Kid Vinil, gravamos pela Trama, e participamos de um evento da gravadora em Franca; foi lá que conheci pessoalmente Rappin’ Hood, colega de elenco; após o evento Adonirando conversei com ele e comentamos sobre ele, até onde sabemos, ter trazido o rap para o Municipal.) 

Notemos também a clarinetista Laura Santos, nova integrante do Conjunto João Rubinato, e que aos 17 anos de idade – sim, de idade – toca como gente grande da melhor e já pode falar que tocou no Theatro Municipal lotado com quase todo o pessoal citado acima. E falamos em Adoniran comentando “Até parece que eu sou Bach!”; pois bem, o evento terminou com João Carlos Martins regendo a Orquestra Bachiana Filarmônica SESI-SP, em dupla com Roberto Minczuk, num arranjo sinfônico para “Trem Das Onze”.

E só mesmo uma pessoa chata como eu para descobrir e apontar falhas num show como este. Faltou apenas um slide de crédito às parcerias de Adoniran (Vinicius, Molles, Hervê), o nome de Rappin’ Hood apareceu grafado como “Happin’” e houve ligeiras falhas no som, mas, como eu disse, só mesmo uma pessoa chata como eu para reparar pequenas falhas num grande espetáculo. O clima informal de “sarauzão” aumentou ainda mais o charme do evento, em nada respeitoso e planejado demais a ponto de parecer “engessado” – e tais falhas se perdoam em tão grande evento reunindo tanta gente boa. 35 anos após sua morte, Adoniran está mais vivo do que nunca, e unindo diversas gerações, gêneros musicais e regiões brasileiras.

Tem mais: este projeto será apresentado, junto com o acervo do Museu Adoniran Barbosa, mensalmente em vários SESCs a partir de maio. E João Carlos Martins anunciou: em 2019 é a vez de Luiz Gonzaga receber semelhante série de homenagens. (O que faz lembrar: será que logo teremos de volta às telinhas e telonas o filme Caídos Do Céu, de Adhemar Gonzaga, onde Adoniran canta “Cortando Um Pano” de Gonzagão?) É beleza, João, é beleza, João...