CASAGRANDE E MALOCA: BELO LANCE INICIAL DO PROJETO ADONIRANDO
“Até parece que eu sou Bach!”
Assim exclamou Adoniran Barbosa ao ser redescoberto por gravadoras e grande imprensa
na virada dos anos 1970 para 1980. Certamente, Adoniran teria gostado muito de ter
ouvido sua música interpretada num espaço onde a comum das pessoas esperaria
ouvir Bach: o Theatro Municipal de São Paulo, onde tivemos agora em 31 de
janeiro o espetáculo Adonirando, inaugurando o megaprojeto Ano Adoniran, ao
qual assisti e de que segue abaixo um breve relato. (Mais detalhes sobre o
evento aqui e aqui.)
Isso mesmo, nada de elitismos. O
Theatro Municipal não é lugar somente de “alta cultura” e “espetáculos chiques”
– basta lembrar de Tonico e Tinoco se apresentando lá em 1979, tendo ainda sido
precedidos por Moreno e Moreninho em 1954. Tampouco nada de arte com rótulos e
compartimentos estanques. Um artista como Adoniran transcende seu gênero musical,
mesmo quando se torna praticamente sinônimo dele; do mesmo modo que o citado Bach
tem sido interpretado, citado e adaptado por artistas distantes da música erudita barroca
como Vinícius de Moraes, Jessé, os Byrds e as Supremes, a obra de Adoniran vem
sendo revisitada por artistas distantes do samba como Dominguinhos, Guilherme Arantes,
Nhá Barbina, Little Quail & The Mad Birds e até pessoas estrangeiras como a
banda italiana I Romans, o cantor israelita Matti Caspi e o cantor ítalo-cubano Don Marino Barreto
Jr.
O projeto Adonirando é um dos
mais espetaculares (inclusive literalmente) resultados da confluência de diversos
esforços pró-Adoniran, incluindo o Conjunto João Rubinato (dedicado a resgatar a
obra do artista), o livro de Celso Campos Jr. (primeiro grande livro sobre sua vida, Adoniran: Uma Biografia), o meu (primeira grande discografia e musicografia, Adoniran: Dá Licença De Contar), o de Tomás Bastian, líder do CJR, em parceria comigo (Adoniran Em Partitura) e o entusiasmo do
ex-jogador Casagrande, grande fã de Adoniran (e também corintiano) e que teve a ideia de montar este show.
Muitas das atrações deste evento eram
prazer musical anunciado e já esperado; outras foram semi-surpresas (já explicarei)
e houve também surpresas tão inesperadas (ao menos para o grande público) quanto
agradáveis (para o público em geral).
Eu já esperava gostar de ouvir Luiza
Possi cantando “As Mariposa”; Baby do Brasil com “Saudosa Maloca” (inclusive imitando
Elza Soares); Demônios da Garoa com um pot-pourri de “Malvina”, “Joga A Chave” e
“Apaga O Fogo, Mané” e, como bis não programado, “Já Fui Uma Brasa”; Eduardo Gudin
com “Armistício” (parceria sua com o vate do Bixiga); Carlinhos Vergueiro com “Torresmo
À Milanesa” (idem); Paulinho Boca De Cantor (com “Minha Nêga”, na qual também tem
parceria junto com Carlinhos Vergueiro); Toinho Melodia com “Comê E Coçá É Só
Começá”; e o Conjunto João Rubinato, que acompanhou quase todo mundo, inclusive com participação do grande Osvaldinho da Cuíca. (Merecem destaque duas pessoas vocalistas do CJR, respectivamente Gregory Andreas com "Duas Horas Da Madrugada" e Soraia Ioti com "Teu Orgulho Acabou", duas das doze canções lançadas pela primeira vez em disco no CD que acompanha o livro Adoniran Em Partitura).
Das semi-surpresas, Arrigo Barnabé
mostrou que não se resume ao Frank-Zappa-encontra-Gil-Gomes com que se
celebrizou; lembremos que ele é também autor de belas canções como a valsa “Londrina”,
e no evento Adonirando ele brilhou quase sozinho ao piano com “Bom Dia,
Tristeza” (em boa dupla com o violonista Ronaldo Rayol). E já que Adoniran gostava
“dos meninos desses tal de iê-iê-iê”, tivemos Paulo Miklos em pessoa e no telão
em cenas do filme Dá Licença De Contar (sim, xará de meu livro, embora a frase seja de Adoniran), onde interpreta o papel do Poeta do Bixiga, e Nasi
e Johnny Boy interpretando “Iracema”. (Por sinal, há alguns anos tive a honra e
prazer de participar das interpretações de ambos em “Iracema” e “Samba Italiano”
num especial sobre Adoniran para a TV Cultura.)
Ah, as surpresas... Todas, como eu
disse, muito boas. Luiz Carlini, o “Keith Richards da Pompeia”, brincou de Jimi
Hendrix com um breve arranjo instrumental sem acompanhamento do “Samba do Arnesto”
à moda do mestre de Seattle, e deve ter surpreendido muita gente que não ouviu,
por exemplo, Rita Lee interpretando a mesma canção no álbum-tributo Adoniran, O
Poeta Do Bixiga em 1990. O diretor e ator teatral Cassio Scapin (sim, aquele do
Castelo Rá-Tim-Bum) brilhou recitando-interpretando letras de canções como “Um Samba No
Bixiga”, “O Samba Do Metrô” e “Olha A Polícia!” e cantando (bem) “Samba
Italiano”. “Prova De Carinho” teve duas boas interpretações, com Kiko
Zambianchi (sim, roqueiro que também é de samba, e que sabe que Adoniran também é do rock) e o tenor Jean William. Gostei de ouvir duas cantoras que eu não
conhecia: Laya e... Sabrina Parlatore. Sim, a apresentadora, que foi “commère”
deste evento e revelou que também pode seguir carreira de cantora com uma bela versão
em fox-trot de “Tiro Ao Álvaro”. Rappin’ Hood saiu-se bem em “Saudosa Maloca” não
só no belo rap que entoou, mas também cantando, apesar do pouco
ensaio e do tom não ser o ideal para ele. E Hood cantou num belo dueto com Baby
do Brasil – não, ela não disse “Rá!”, mas Hood disse “Rá-tá-tá-tá” imitando
arma de fogo em seu rap. (Quando fui integrante do Magazine de Kid Vinil, gravamos
pela Trama, e participamos de um evento da gravadora em Franca; foi lá que
conheci pessoalmente Rappin’ Hood, colega de elenco; após o evento Adonirando
conversei com ele e comentamos sobre ele, até onde sabemos, ter trazido o rap
para o Municipal.)
Notemos também a clarinetista Laura Santos, nova
integrante do Conjunto João Rubinato, e que aos 17 anos de idade – sim, de idade
– toca como gente grande da melhor e já pode falar que tocou no Theatro Municipal lotado com quase todo o pessoal
citado acima. E falamos em
Adoniran comentando “Até parece que eu sou Bach!”; pois bem, o evento terminou com
João Carlos Martins regendo a Orquestra Bachiana Filarmônica SESI-SP, em dupla com Roberto Minczuk, num arranjo sinfônico
para “Trem Das Onze”.
E só mesmo uma pessoa chata como
eu para descobrir e apontar falhas num show como este. Faltou apenas um slide
de crédito às parcerias de Adoniran (Vinicius, Molles, Hervê), o nome de Rappin’
Hood apareceu grafado como “Happin’” e houve ligeiras falhas no som, mas, como
eu disse, só mesmo uma pessoa chata como eu para reparar pequenas falhas num grande espetáculo. O clima informal de
“sarauzão” aumentou ainda mais o charme do evento, em nada respeitoso e
planejado demais a ponto de parecer “engessado” – e tais falhas se perdoam em tão grande evento reunindo tanta gente boa. 35 anos após sua morte,
Adoniran está mais vivo do que nunca, e unindo diversas gerações, gêneros
musicais e regiões brasileiras.
Tem mais: este projeto será apresentado, junto com o acervo do
Museu Adoniran Barbosa, mensalmente em vários
SESCs a partir de maio. E João Carlos Martins anunciou: em 2019 é a vez de Luiz Gonzaga receber semelhante
série de homenagens. (O que faz lembrar: será que logo
teremos de volta às telinhas e telonas o filme Caídos Do Céu, de Adhemar
Gonzaga, onde Adoniran canta “Cortando Um Pano” de Gonzagão?) É beleza, João, é beleza, João...