Friday, May 13, 2016

PREFIRO FICAR AQUI COM TODA A GENTE DOIDA: BREVE ESTUDO SOBRE DAVID BOWIE E O CIRCO

Sim, o inglês David Bowie (1947/2016) foi cantor, compositor, multi-instrumentista, ator – enfim, artista multimeios e versátil ao extremo de merecer o epíteto de “Camaleão”. E, sim, Bowie merece também figurar em minha pesquisa sobre música e circo, justamente a forma de entretenimento mais aberta a ecletismo e versatilidade. De sua primeira fase nos anos 1960 ao final agora nos anos 2010, a obra de Bowie tem muitas citações e associações ao circo, literal ou figurado, em música ou visuais, aludindo ao circo normal ou ao de horrores, de forma direta ou sutil, em obras mais obscuras e em alguns de seus grandes sucessos.

Logo que começou a existir como superastro, em 1972, Bowie foi elogiosamente associado ao circo numa reportagem sobre o show de lançamento de seu álbum Ziggy Stardust And The Spiders From Mars por Charles Shaar Murray no jornal inglês New Musical Express: “Há um circo itinerante de três picadeiros com pessoas cabeleireiras, pessoal da equipe técnica, quebra-galhos, seguidores de campo e bobos-da-corte, tudo girando em torno de um andrógino enganosamente delicado de 25 anos de idade chamado David Bowie.” (O recorte original segue logo aí abaixo).

Em “Life on Mars?”, do álbum anterior, Hunky Dory, de 1971, Bowie canta "'Rule Britannia' ["a grã-Bretanha governa"] passou dos limites/pra minha mãe, meu cachorro e os palhaços". E uma de suas últimas gravações, "Sue (Or In A Season Of Crime)", de 2014, usa em seu último verso o palhaço como adjetivo, "you went with that cloooooown..."; confiram aqui. E, sempre afeito a fazer boas regravações de canções alheias, em 1968-9 Bowie gravou uma demo (que hoje pode ser conferida no Youtube) da bela e perturbadora canção "Life Is A Circus" de Roger Bunn (1942/2005, que viria a ser o primeiro guitarrista da banda Roxy Music e por pouco não entrou para os Bluesbreakers de John Mayall em vez de Mick Taylor). Há pelo menos mais uma gravação de Bowie que menciona o circo e que teve de esperar para ser lançada, composta pelo próprio Bowie e nem esperou tanto para sair: “Karma Man”, gravada em 1967 e lançada em 1970 A gravação pode ser ouvida aqui. E seguem trechos da letra numa tradução livre:

O Sol na ponta dos dedos em tendas de “sideshow” de circo, eles(as) jogam as bolas
Em pele de coco que se esconde atrás de máscaras coloridas que te cegam os olhos
A mãe de cada criança segura uma casquinha de sorvete, eles formam um círculo em volta
Percebidas sem o saberem por um olho que espreita de um buraco na tenda onde ninguém vai
Uma figura sentada de pernas cruzadas no chão, ele está soterrado e vestido de túnicas cor de açafrão
Suas contas de colar são tudo o que ele possui

Diminua a velocidade
Alguém deve ter dito isso pra ele ir devagar
Diminua a velocidade
Está retratado nos braços do homem-karma

Pele de conto de fadas, retratando cenas de zoológicos humanos
Brinquedos impermanentes como a paz e a guerra, um rosto gentil que tu já viste antes
Homem-Karma tatuado em teu lado, a roda da vida
Vejo meus tempos e quem eu fui, eu só vivo agora e não sei por quê
Eu dou duro para aceitar essas imagens, mas
Todas as pessoas minhas amigas podem ver que é apenas a coloração rósea da pele dele

Diminua a velocidade
Alguém deve ter dito isso pra ele ir devagar
Diminua a velocidade
Está retratado nos braços do homem-karma

(A palavra “sideshow” não tem equivalente exato em português e designa atrações circenses secundárias como apresentações de artistas desconhecidos e aberrações do chamado “circo de horrores”.)

Falamos em circo dos horrores. Pois bem, embora um homem bonitão, Bowie não se furtou a citá-lo em pelo menos duas de suas obras. Uma é a capa do álbum Diamond Dogs, de 1974, onde ele aparece (numa pintura de Guy Peellaert) como um homem-cão, com direito a genitais proibidas pela censura nos EUA e outros países; temos abaixo imagens das diversas versões da capa. (Se bem que todas as reedições do disco desde 1990 trazem a pintura original) A outra é o papel principal na montagem de 1980 da peça teatral The Elephant Man, baseada na vida do inglês John Merrick (1862/1890), a famosa vítima de uma doença mutiladora que não lhe deixou alternativa de sobrevivência além de se expor em circos de horrores; a atuação de Bowie mereceu muitos elogios da crítica, e alguns trechos podem ser conferidos aqui.



Mas o bonitão Bowie não se limitou a se enfeiar. Basta lembrarmos sua pose de pierrô no vídeo da canção “Ashes To Ashes” (vejam aqui) e na capa do álbum Scary Monsters And Super Creeps, de 1980 (a cujo título ele não faz jus nesta capa) e sua estreia teatral na peça Pierrot In Torquoise dirigida por Lindsay Kemp em 1967. O próprio Bowie assim se definiu para o jornal Daily Express em 1976: "Sou Pierrô. Sou Homem Comum. O que eu faço é teatro e apenas teatro. [...] O que se vê no palco não é sinistro. É pura palhaçaria. Uso a mim mesmo como uma tela e tento pintar a verdade de nosso tempo."

Bowie mostrou também ser bom de mímica no filme Labirinto (embora tenha usado um dublê para cenas de malabarismo) e no curta-metragem The Mask. de 1969 (vejam aqui). 


Não esqueceremos a ambiência circense da capa do álbum Never Let Me Down, de 1987.

Outra canção de Bowie que menciona o circo é a misteriosa "Shilling The Rubes", misteriosa não só pela letra (normal em se tratando de Bowie) mas também por ser sobra inédita do álbum Young Americans; até o momento só me apareceram a letra e trechos de áudio na internet. Para mim o mistério já começa no título: "shilling the rubes", até onde pude deduzir consultando o Google e meus velhos e bons dicionários de papel, é expressão circense que significa "fazendo propaganda para o povão" ou "tapeando os caipiras pra ganhar dinheiro". A letra pode ser conferida nesta bela página sobre a gravação do disco Young Americans, e aqui vai uma tradução livre:

Deitado [ou deitada?] na esquina
Há quanto tempo você acordou?
Você expõe sua vida

Quanto ele pegou?
Sempre sem contar o troco
Foi para outra
É só uma roda-gigante
É só um trem-fantasma
É só um circo de três picadeiros
Mestre de cerimônias, homem [ou mulher]-bala
Sempre sem contar o troco
Foi pra outra
Agora ele se foi
Foi, o dia em que ele saiu da cidade
Foi, ele estava tapeando o povão
Foi, deixe as lágrimas de um palhaço
E ele se foi, ele estava tapeando o povão 
Quinze novas caras
Quinze novos dias
E você ainda não o esqueceu
Doideira fervente
Sempre sem contar o troco
Ele foi pra outra
Agora ele se foi

Enfim, Bowie é uma espécie de Charlie Chaplin moderno: artista versátil que soube trazer o circo para plateias não-circenses. Suponho que Bowie tenha ainda outras menções ao circo em sua obra, mas, em todo caso, acho que esta amostra ficou boa. E temos ainda o álbum de três CDs A Son Of The Circus, ao vivo em 1987 e que talvez nem conte por ser pirata...


(Este artigo nasceu em forma mais embrionária no meu perfil do Facebook, e se expandiu graças, em parte, a comentários e contribuições de pessoas amigas como Mônica Ananias, Maurício Maia, Sergio Martorelli, Gustavo Guimarães, Rosana Tokimatsu, Nadja Bandeira, Juliano Malinverni e Alzira Mammana (lembrei-me de que a canção “Karma Man” tinha a ver com o circo ao trazê-la a uma conversa com Alzira sobre religião hindu, pois que Bowie foi uma das primeiras pessoas a trazerem tal cultura para o Ocidente e também para a música pop-rockde forma explícita em letra de canção, embora já houvesse precedentes sonoros dos Kinks, Yardbirds e Beatles). Lembrarei também o apoio constante de Verônica Tamaoki – que, simplesmente, me transformou em pesquisador e até artista circense. Continuo absolutamente são e, enquanto todos e todas estivermos juntos(as), o resto que se dane...)

Tuesday, May 03, 2016

ACONTECE QUE ELE É CAYMMI: ENTREVISTA A BIG MUG EM 1994

Um de meus grandes orgulhos como pesquisador e jornalista foi ter entrevistado um de meus heróis, o compositor e cantor Dorival Caymmi (1914/2008), quando ele completou nada aparentes 80 anos de idade, em 1994. A entrevista rendeu uma matéria para a saudosa revista Qualis, e eu e o fotógrafo Carlos Mancini fomos recebidos pelo autor de “Sábado Em Copacabana” no seu apartamento carioca em 20 de outubro de 1994 – uma quinta-feira em Copacabana. Dorival nos falou de toda sua carreira por duas horas e meia, e só parou porque tinha de acompanhar em consulta médica a esposa , Stella Maris (“minha gata”). A entrevista foi gravada (em boas e fieis fitas cassete) e pode ser ouvida aqui na íntegra; confiram o mestre lembrando suas primeiras notas ao violão com “Tatu Subiu No Pau”, uma breve porém marcante interpretação da valsa “Boa Noite, Amor” de José Maria de Abreu e Francisco Mattoso, a então recente “Maricotinha”, seus elogios a artistas como Jorge Ben Jor e Almir Sater, suas opiniões sobre o rock and roll e o pagode moderno, o que significa “liforme” e muito mais, mantendo a boa voz do radialista que foi quando jovem na Bahia. Ouçam aqui.

E temos abaixo o artigo resultante da entrevista, publicado em novembro de 1994 e incluindo a mais completa discografia publicada até então (pena que aparentemente este artigo não chegou à atenção de Stella Caymmi quando ela escreveu seu sumamente recomendável livro sobre o avô, O Mar E O Tempo, lançado pela Editora 34 em 2001).
  















(Carlos Mancini tirou fotos de repórter e entrevistado, mas não as localizei no momento; voltarei para incluir tão logo elas apareçam.)

Aproveitei a viagem, a qual foi pequenininha, para pedir a Dorival que autografasse alguns itens de meu acervo, o que ele fez prazerosamente, e ao longo deste tópico coloquei amostras como esta.


E, além da entrevista em áudio e da matéria publicada, resolvi trazer para o blogue alguns bônus de informações sobre Dorival (notem que quase sempre procuro evitar me referir a ele como apenas “Caymmi” – embora ele próprio fizesse isso –, pois sua prole já há décadas honra muito o sobrenome).

CAYMMI E TOM
Ainda em novembro de 1994, mal saiu esta edição da revista, perdemos Tom Jobim, e a Qualis fez um número especial sobre ele. A redação colheu depoimentos de pessoas ligadas a Mr. Jobim, e obviamente uma das primeiras pessoas a serem lembradas foi Dorival Caymmi, que inclusive fez várias gravações com o jovem colega (Tom era quase treze anos mais moço que Dorival); a boa repercussão de minha entrevista com Dorival garantiu-me a honra de falar com ele sobre Tom. E assim falou o mestre baiano (pena que desta vez não tive como gravar...): “Eu não gosto de enterros, não fui ao enterro. Meu jovem amigo Tom é um ser vivo. Por toda a minha vida eu sei que vou amá-lo!”




ENCARTE DE CAYMMI
Não é todo mundo que sabe que um dos primeiros LPs de Dorival Caymmi, Sambas De Caymmi, um 10 polegadas lançado em 1955, tem um encarte com as letras do disco. Este encarte tem ilustrações do próprio Caymmi e é hoje bem mais raro que o disco. Aqui vai ele, completo com a capa de meu exemplar autografado.

 

CAYMMI E A PUBLICIDADE
Ser antitabagista não me impede de lembrar uma canção de Dorival Caymmi composta especialmente para uma marca de cigarros em 1975, mas que, felizmente, funciona independente dos ditos como uma canção laudatória ao Brasil no melhor sentido, lançada num hoje raro compacto simples.
 

CAYMMI E GAROTO
Outro grande nome da MPB que merece um grande estudo destes é o saudoso multi-instrumentista Garoto (1915/1955), que em sua curta vida e carreira fez shows e gravações com artistas diversos como Carmen Miranda, Laurindo Almeida, Aracy de Almeida, Alvarenga & Ranchinho, Paraguassú, Mario Albanese e, siiiiim!, Dorival Caymmi, como prova a primeira gravação de “Promessa De Pescador” (a mesma regravada por Carlos Santana décadas depois). de 1939 – temos aqui os selos de reedições dos anos 1940 e 1950.


CAYMMI E O CIRCO
Um artista dos mais importantes como Dorival Caymmi não poderia faltar em minha pesquisa sobre a música brasileira e o circo. Pois bem, o mais grandioso show de sua carreira foi num circo - mais exatamente, as ruínas do Circo Massimo de Roma, em agosto de 1983, participando de um megaevento  - talvez o maior já realizado - de música brasileira no exterior; há mais detalhes no livro O Mar E O Tempo. E trarei o que mais eu descobrir sobre Dorival e o circo.

O CANTOR DORIVAL CAYMMI
Dorival Caymmi, além de cantor e violonista dos melhores, poderia ter feito uma bela carreira apenas com seus dotes vocais,como demonstram suas poucas e boas interpretações de canções alheias. Talvez a melhor seja “Na Baixa Do Sapateiro” de Ary Barroso – justamente “o mais baiano dos compositores não nativos da Bahia”. Ouçam aquiOutro bom exemplo é sua gravação de “Essa Nêga Fulô”, versos de Jorge de Lima musicados por Oswaldo Santiago (e que ganhariam melodia diferente de Waldemar Henrique na gravação posterior de Jorge Fernandes), lançada em 1941 pelo selo Columbia e relançado dois anos depois, logo após este selo ter mudado de nome para Continental. Notem o sobrenome de Caymmi grafado no selo de forma mais próxima ao original italiano, “Caimi” (um bom resumo da genealogia está no livro O Mar E O Tempo).


CAYMMI DIGITAL
Quase toda a obra de Dorival Caymmi foi lançada pela gravadora Odeon (mais tarde rebatizada EMI), que em 2000 reuniu tudo (ou pelo menos quase) numa bela caixa de CDs, Caymmi, Amor E Mar (uma caixa mesmo, com mais de 14 faixas por CD). Não faltou o primeiríssimo disco – e  também primeiro sucesso – de DC, “O Que É Que A Baiana Tem?”, em dueto com Carmen Miranda, de 1939. Por ora, tenho alguns dos primeiros compact-discs de Dorival, inclusive um que é quase caso para o PROCON: uma coletânea de faixas de Dorival e Nana onde apenas uma faixa é realmente dueto de pai e filha, as outras sendo gravações solo dele e dela – mas este CD vale a pena por reunir raridades do paizão dos anos 1940, como a gravação original de “Marina”, em andamento bem mais vivo (e, ao menos para mim, melhor) que o samba-canção em que a canção se tornou.


CAYMMI INSPIRADOR
E  já que no meu espaço posso falar de mim, lembrarei duas canções caymmianas de minha autoria, uma mais bem-humorada e a outra mais lírica. A engraçadinha é “Claudia Eliana”, de 1995, com influência direta da entrevista e de semanas ouvindo o mestre e seguindo-lhe o exemplo de colocar em música damas que já são poemas e melodias. Podes ouvi-la aqui. E a bonita é “A Letra Do Caymmi”, de 2011, versos meus com belas melodia e interpretação da parceirona Socorro Lira – sim, trata-se de uma paraibana e um paulista homenageando um baiano. Ouça aqui.

Terminando pelo começo, incluo uma imagem do citado primeiro disco de Dorival Caymmi, que cantando modas muita figura fez e do danado do samba nunca se separou...