Friday, January 27, 2023

ARTIGO BASEADO EM “CAUSOS” REAIS: LEOPOLDO REY (1944/2023)


Não só a Áustria, a Grécia e a Bélgica tiveram seus reis Leopoldos; o Brasil também teve. Ou melhor, teve, tem e sempre terá, vivo e presente em sua obra e trabalho de pesquisa, na lembrança de quem conheceu a pessoa franca, sincera, irreverente e bem humorada e no exemplo para quem mais se aventurar no rádio, jornalismo e produção musical. Sim, falamos de Leopoldo Rey, falecido de problemas cardíacos em 20 de janeiro, e este artigo é uma breve recolha de sua obra, inclusive como meu amigo e parceiro em emissoras de rádio, jornais, revistas e até festivais de música.

UM POUCO DO COMEÇO



O cidadão Francisco Leopoldo Santos d’Arienzo surgiu em 17 de agosto de 1944 e logo revelou vocação para música, não tanto tocar ou cantar, mas sim como escritor e radialista. “Logo fiquei famoso como ‘o cabeludo da cidade’”; não demorou para Leopoldo contrair a síndrome de Francisco Alves, Luiz Gonzaga e Roberto Carlos, sendo chamado de “Rei do Rock” e gostando a ponto de se crismar “Leopoldo Rey”, com a distinção do “Y”. Ele chegou a me presentear com alguns de seus discos dessa época, como este compacto de John Lennon da foto acima. Logo ele criou este carimbo, promovendo seu nome de guerra e usando as iniciais de seu nome completo:

F L S D

REY

Sim, as iniciais dispostas desta forma lembram uma sigla psicodélica muito famosa, e a intenção de Rey foi essa mesma...

DISCOTECA REAL

Muitas das melhores famosas ou obscuras gravações do rock tornaram-se conhecidas do publico brasileiro graças a Leopoldo Rey e seus programas radiofônicos, como Rock Sandwich, Reynação e Momento do Rock; ele merece ser lembrado e divulgado ao lado de Big Boy, Jacques Kaleidoscopio, Kid Vinil e outros mestres.

 


Muito provavelmente você tem algum disco em que Rey participa de alguma forma. Um exemplo é a bela coletânea From 64 At 70, reunindo quase todos os maiores sucessos da primeira fase dos Kinks (1), e cujo texto da contracapa é dele. 


Temos também Teen Spirit, CD (com uma pequena tiragem em LP) inspirado no programa deste nome apresentado e produzido por Rey na FM 97, incluindo Okotô, Sepultura e Golpe de Estado, além de um texto do próprio Rey.




E há pelo menos uma gravação onde Rey aparece como compositor: “Mexa-Se, Boy”, versão do clássico do blues “Mannish Boy” de Bo Diddley, em parceria com Oswaldo Vecchione (embora não creditada como versão), contrabaixista e líder da banda Made In Brazil, e lançada no álbum Pirata II do Made em 1986. (2) 




Além disso, a voz de Rey pode ser ouvida em pelo menos um disco: o CD anexo a uma edição especial sobre Raul Seixas da revista Shopping Music, lançada em maio de 1998. Este disco inclui gravações inéditas de Raul e entrevistas dos anos 1980 por Marilia Gabriela, Pedro Bial, Kid Vinil, Valdir Montanari, André Barbosa Filho e, claro, Leepoldo Rey, os quatro últimos numa bela entrevista coletiva para o programa Rock Show da Excelsior AM em 1981. (Ah, sim: o texto desta revista é deste que vos escreve, e o disco quase incluiu a famosa confissão do plágio de “Rock Das Aranhas”, mas ficou de fora devido à qualidade sonora inferior às outras.)

 



Agora, Rey também chegou a ser vendedor de discos, ao menos pelo pouco tempo, na segunda metade dos anos 1980, que durou a loja Rebel Songs, na galeria Gemini, a que liga a Alameda Santos à Avenida Paulista. A Rebel Songs foi uma loja relâmpago, mas deu tempo para um “causo” que Rey me narrou. Foi a época do disco Yauaretê de Milton Nascimento, e a gravadora enviou um belo pôster promocional. Adivinhem quem foi visitar a loja e se encantou com esse pôster: Geraldo Vandré. Muita gente diz que ele finge loucura para não ser perturbado por simpatizantes da ditadura militar, e este “causo” talvez demonstre essa tese. Segundo Rey, Vandré viu o pôster e seguiu-se um diálogo assim:

- Vende esse pôster pra mim?

- Vender? Que nada, é material promocional da gravadora, eu te dou de presente e depois pego outro.

- Não quero de presente, faço questão de pagar!

- Ah, deixa de bobagem, eu te dou de presente!

- Não, eu quero pagar!

Ficaram nessa até que Rey capitulou:

- Tá bom, eu te vendo por preço tal.

E Vandré respondeu:

- Ah, muito caro, não quero!

E, antes de ir embora, ainda colocou uma bela cereja no bolo:

- Me diz onde eu posso expor esse pôster e cobrar ingresso! 

FAMILIA REAL

Tive com Leopoldo Rey a mesma surpresa agradável que quando conheci, por exemplo, o músico Mano Del Picchia e a cantora Cris Aflalo – a mesma surpresa que, por exemplo, Chico Buarque causou em quem conhecia seu pai Sérgio Buarque de Hollanda e seu parente Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira. Fiz “uma pergunta que você deve ouvir umas quatro vezes por dia” e me responderam: Mano é neto de Menotti Del Picchia e Cris é sobrinha do jornalista Armando Aflalo. Pois bem, ao saber que o sobrenome de Leopoldo Rey era D’Arienzo, perguntei: algum parentesco com o grande maestro e compositor argentino Juan D’Arienzo (1900/1976)? A resposta foi um “sim” mais que entusiástico, acompanhado de um “causo”. Parentes de Rey foram à Argentina e lá pegaram um táxi; o motorista era sociável e, conversa vai, conversa vem, ele, ao saber que estas pessoas passageiras eram D’Arienzo e parentes do maestro, ficou tão feliz que, vejam só, fez questão de não cobrar pela corrida. (3) Inclusive, fui encontrado por um LP de Juan d’Arienzo que até traz “Rey” no título – Juan era conhecido como “El Rey del Compás”, rei do ritmo, e “Rey del Tango” – , e eu disse a Rey que iria presenteá-lo com este disco em nossa reunião seguinte, que acabou não acontecendo...  

 


Outro toque de realeza foi o apelido de Christina Queen dado à saudosa primeira esposa de Rey, Maria Christina Fagundes. E imaginem a Rainha Elizabeth II atendendo ao telefone dizendo “aqui é a mãe do Charles”. Pois bem, Vicentina d’Arienzo (1913/1996) foi grande atriz, professora de educação física e nada menos que a primeira mulher a apitar um jogo de futebol no Brasil (Palmeiras, então ainda Palestra Italia, contra o Esporte Clube Santana, da cidade de Itapeva); em 1939 casou-se com o “oriundi” Luiz d’Arienzo Neto, com quem teve duas filhas e um filho. Pois bem, em algumas vezes em que telefonei para Leopoldo Rey, ela estava lá e atendeu; eu perguntava quem era e ela, tão mãe-coruja quanto simpática, respondia: “É a mãe do Rey!” Comentei sobre isso com o filhão e acrescentei: “Se ela é a mãe do Rey, então é a Rainha-Mãe!” Ele e ela gostaram tanto que, quando ela faleceu, Rey homenageou-a em sua coluna na revista On & Off dizendo: “A Rainha-Mãe se foi.”

PARCERIAS REAIS

Tive a honra e prazer de trabalhar com Leopoldo em muitas de minhas atividades: jornalista, radialista, produtor de eventos e até jurado de festival – além, é claro, de participar de seu programa de rádio e vice-versa. 

O meu primeiro contato de que me lembro com Rey foi exatamente em 2 de agosto de 1984, quando toquei com uma de minhas bandas, Galileu, no saudoso bar Albergue, de propriedade do também saudoso Lelo Cadillac, da banda Coke-Luxe, na rua Rui Barbosa. Rey estava na plateia, e esta foi sua impressão do Galileu (uma canja de quatro canções (4) ): “Algumas letrinhas eu achei interessantes.” Mal sabia eu que dali a um ano e meio meu programa Rádio Matraca encontraria na FM 97 uma Pasárgada e lá eu seria vizinho e amigo de Rey. (5)

Na virada dos anos 1980 para 1990 eu, já tendo me afirmado como jornalista, compositor, músico e radialista, arvorei-me em outra função: produtor de eventos, no Espaço Persona, onde praticamente residi de 1988 a 1993. Dois dos eventos que produzi no Persona, em parceria com Carmen Flores, cantora e proprietária do local, foram duas edições do Festival Persona de Música, e num deles Leopoldo Rey nos honrou como integrante do júri. E na mesma época, em março de 1990, eu e ele fomos jurados do quinto Festival de Música da ADC Eletropaulo; confiram estas amostras da cobertura do evento pelo tabloide da empresa, Notícias ADC Eletropaulo. (Leopoldo é o último à direita na foto; notem a presença de outras pessoas grandes parceiras, como o músico Johnny Boy.)

 


Trabalhámos juntos no Jornal da Tarde (6), de onde saímos em abril devido aos problemas financeiros causados pelo Terraplano C*ll**. Inclusive, participamos da cobertura do primeiro festival Hollywood Rock, em 1990. E segue abaixo uma pequena batalha de confete, tirada do JT de 11 de outubro de 1989 e da revista On & Off, edição 8, de 1993. (Sobre essa história de Aiatolá, explicarei no item seguinte.)




REAL HUMOR REAL

Ninguém da FM 97 escapou da galhofeira Rádio Matraca em nossos quase dois anos na emissora. Sidnei Moreno Lopes, mais que excelente imitador – do nível de um Geraldo Alves, com todo o respeito às novas gerações – , era um camaleão, e ele glosou Leopoldo Rey e seu programa Momento Do Rock como “Leopardo Gay e o Momento do Loki”. Rey, ele mesmo bem humorado, divertia-se com as gozações e as revidava. O Momento Do Rock era um programete onde Rey mencionava e comentava alguma data importante na história do rock e tocava uma gravação pertinente. Um dia Rey visitou uma gravação da Rádio Matraca e acabou participando; Sidnei começou a imita-lo inventando na hora uma data como “em 26 de julho de 1865”, e Rey atalhou: “Morreu a mãe do Sidnei!” Laert Sarrumor, pego de surpresa, até chamou o intervalo antes da hora... O programa foi ao ar no sábado seguinte e ninguém se divertiu mais do que, adivinhem, a mãe de Sidnei Lopes, que, muito viva e muito bem, veio nos dizer “então vocês me mataram!” Realmente, chiste trocado não dói...

 


Um belo dia apareci na 97 com cabelo curto, barba grande e roupa escura, e, mal cheguei, Rey disparou: “Olha o aiatolá!” Sim, era época de mais um entre tantos lideres detestavelmente radicais e extremistas, o Aiatolá Khomeini. Então eu mesmo aproveitei a deixa: “Aiatolá Mugnaini!” E Rey e outras pessoas na 97 seguiram me chamando de Aiatolá mesmo anos após eu ter saído da emissora, em 1989. O jeitão de adorável rabugento bem-humorado era excelente assunto para desenhos como este logo acima que fiz em 1994 para a revista Dynamite, inclusive trocadilhando com o filme disneyano O Rei Leão. No ano seguinte compus um tema no estilo NWOBrHM (New Wave Of Brega Heavy Metal), “Reyclamão”, e a primeira reação de Rey foi: “Pô, Ayrton, pára de falar que eu só reclamo, minha família já está me enchendo o saco!” 

E QUEM é REY NUNCA PERDE A MAJESTADE

Sei que esta breve recolha é apenas uma amostra da obra de Leopoldo Rey, mas muito mais pode ser lido em locais como Maquiavelli, Olhar Dinâmico, Startrips e um dedicado ao proprio.

E desde já me candidato a escrever um livro sobre nosso velho homem do rock em Atibaia e no mundo. “Brincadeira?!”

(1) Num belo exemplo de “supercompensação” e de “antes tarde do que nunca”, os primeiros sucessos dos Kinks, quase todos inéditos no Brasil, deixaram de sê-lo 25 anos depois, e em dose dupla: o ano de 1989 começou e terminou com nada menos que duas coletâneas brasílicas da banda, esta From 67 At 70, lançada em março, e uma Greatest Hits da RGE, em setembro. A primeira nasceu de licenciamento das gravações da Movieplay portuguesa para a Brasidisc (que, para idealizar o titulo em inglês, fez um acordo não intencional com Tarzan, disso nosso querido Leopoldo Rey não teve culpa, embora ele mesmo tenha escrito erroneamente o sobrenome do contrabaixista original dos Kinks, Pete Quaife, como “Quaiffe”); já a RGE havia obtido licença diretamente da gravadora inglesa PRT, então a detentora destes fonogramas. Curioso é estas duas coletâneas totalizarem 25 faixas mas terem apenas oito em comum, nenhuma sendo “Apeman”, falha de ambas as coletâneas, e a RGE se esqueceu ainda de outro grande hit, “Tired Of Waiting For You”...

(2) O Made In Brazil lançou simultaneamente dois LPs ao vivo, Pirata I e Pirata II, reunidos num CD simples, intitulado simplesmente Pirata, em 1997 – e desta vez creditando “Mexa-Se, Boy” como versão de “Mannish Boy”.

(3) Pois é... Quantas pessoas brasileiras demonstram tamanho orgulho de celebridades suas conterrâneas antes de nestas ficarem procurando e enfatizando erros ou defeitos?

(4) A formação do Galileu nesse show era Fabian Chacur, vocal; Wagner Amorosino, teclado, violão e vocal; "Lord" Mauricio Bardella, contrabaixo; Ademir "Bonitão" Benedicto, bateria; e Ayrton Mugnaini Jr., arranjos, guitarra e vocal. Essa canja foi gravada, e uma amostra vai aqui

(5) E "o bom filho à casa torna"; surgido na USP FM em 1985, o programa Radio Matraca passou pelas FMs 97 e Gazeta, voltando à USP em 1997 - pois é, a volta pode comemorar jubileu de prata.

(6) O que falta para o lançamento digital do acervo do Jornal da Tarde e, por sinal, da Folha da Tarde?


Wednesday, January 25, 2023

SÃO PAULO: BEM MAIS QUALIDADES QUE DEFEITOS

Neste aniversário da cidade de São Paulo, resolvi homenagear a ela e também a uma ilustre pessoa paulistana que, infelizmente, não alcançou esta data: a jornalista, editora e poetisa Thais Matarazzo, também emérita pesquisadora e memorialista de musica e cultura brasileiras e portuguesas e dona da Editora Matarazzo. Tive a honra e prazer de participar de muitos livros desta editora, inclusive Vamos Falar De São Paulo II?, lançado em 2016; segue abaixo meu texto para este livro - este, aliás, merece ser lido inteiro e procurado na editora ou em sebos.




SÃO PAULO: BEM MAIS QUALIDADES QUE DEFEITOS
Por Ayrton Mugnaini Jr.

Vou começar confessando: amo São Paulo e nela ter nascido – mas nem sempre a amei. Dos 12 aos 22 anos morei nas menores e mais tranquilas Sorocaba e Lins, e desenvolvi uma antipatia pela metrópole: eu me queixava de muita poluição, trânsito sempre parado (ainda não havia metrô nem corredores de ônibus e veículos viviam trombando com dinossauros – sim, havia até um tipo de ônibus enorme apelidado de “dinossauro”)... Quando minha família retornou a Sampa em 1979, resisti o quanto pude, inclusive indo todo fim de semana a Sorocaba para tocar com bandas que eu havia formado. Até que em 1980 acabei me enturmando com pessoas de Sampa, passei no exame para jornalismo da Cásper Líbero, e voltei a ser paulistano de vez, embora falando e pensando com sotaque do “interiorrr”. E desde então me identifico sempre com a última cena do filme O Cangaceiro de Lima Barreto: “Nasci aqui, vou morrer aqui, esta é a terra do meu sertão!” (A autora deste e outros diálogos do filme é a grande escritora cearense Rachel de Queiroz, que logo voltará à nossa conversa.)

Sim, Sampa não é cidade para corações fracos, mas quem não gosta e quiser gostar acaba se acostumando e gostando. Basta lembrarmos duas homenagens musicais do tipo “morde-e-assopra” de pessoas “estrangeiras” sobre a cidade, com alguns comentários meus. Uma é “São São Paulo” (ou “São Paulo, Meu Amor”) do baiano Tom Zé, composta em 1968:

São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor

São oito milhões de habitantes (1)
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito

São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor

Salvai-nos por caridade
Pecadoras invadiram
Todo o Centro da cidade
Armadas de rouge e batom
Dando vivas ao bom humor
Num atentado contra o pudor
A família protegida
Um palavrão reprimido
Um pregador que condena
Uma bomba por quinzena (2)
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito

São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor

Santo Antonio foi demitido
Por ministros de Cupido
Armados da eletrônica
Casam pela TV
Crescem flores de concreto
Céu aberto ninguém vê
Em Brasília é veraneio
No Rio é banho de mar
O país todo de férias
E aqui é só trabalhar
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito

São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor

(1) 8 milhões de pessoas já era muita gente – um décimo da população brasileira – em 1968, imaginem os 12 milhões de 2016...
(2) A censura obrigou Tom Zé a substituir “bomba” por “festival”, mas na gravação ainda se ouve um coro dizendo “bum!”

E em 1971 o cantor e compositor carioca Marcus Pitter fez sucesso com o charleston-rock “Esta Cidade É Um Monstro”, de sua autoria:

Há vinte e poucos anos
Eu nasci neste lugar (1)
São Paulo, minha terra,
Meu chão, meu lar
Aqui eu nasci,
Me criei e cresci
E ao passar do tempo
Pouco a pouco me perdi
Multidão, poluição, construções,
Jatos cortando o espaço sem fim
Multidão, poluição, construções
A Natureza já morreu aqui
Esta cidade é um monstro
Mesmo assim, gosto daqui

(1) Tudo bem, o carioca Marcus Pitter tem licença poética para dizer em letra de música que nasceu em Sampa, do mesmo modo que o ítalo-paulista Mário Zan compôs “Sou Gaúcho”...

E por falar em licença, peço-a para trazer uma letra de canção de uma pessoa paulistana – por sinal que eu mesmo, e esta canção foi lançada em 2004. A gravação pode ser ouvida aqui, e a letra segue abaixo:

NÓS QUE AMAMOS SÃO PAULO
Ayrton Mugnaini Jr.

Eu me lembro da infância que passei
Lá no bairro de Santana
Um dia eu cresci, mas antes me casei
Mudei pra Vila Mariana
Hoje moro na Vila Prudente
Cada bairro de São Paulo
É uma cidade diferente
Mas eu sempre dou um jeito
A cidade inteira cabe
No lado esquerdo do meu peito

Dizem que esta cidade é um mundo
De tão imensa e multiforme
Mas eu penso diferente, que o mundo
É uma São Paulo enorme
Esta cidade é um gigante, um Frankenstein (1)
De concreto, ferro e sangue
Nem direi mais o que tem
Pelo que ela tem de mau eu até choro
Mas pelo que tem de bom
É nela mesmo onde eu moro

Eu já morei em mil bairros diferentes
Mas o lugar onde eu mais vivo
Não é em Santana ou Vila Prudente
É nos pontos de coletivo
Ainda tem muito problema, é verdade,
Mas nós que batalhamos
E amamos esta cidade
Podemos dizer sem medo e sem pausa:
Se em São Paulo dá pra viver
É também por nossa causa

(1) Licença poética até para mim mesmo: eu sei que Frankenstein não é o nome daquele Borba Gato estrangeiro e sim do cientista que o criou, mas tudo bem.

São Paulo até que não se sai mal para uma cidade que tanto cresceu em tão pouco tempo (“a cidade que mais cresce no mundo”). Em 1916 todo o Estado de São Paulo contava 3,3 milhões de almas, e a capital não ia muito além do Pátio do Colégio. O Brasil praticamente se limitava ao Rio de Janeiro e à Bahia, o resto era interior, e o “Estado Bandeirante” era pouco mais que um corredor para transporte do ouro vindo de Minas Gerais e um quintalzão ótimo para se plantar café... Realmente, se o Rio de Janeiro é nossa Princesinha, nossa “Cinderela”, São Paulo se revelou bom exemplo de “Patinho Feio”.

Mas já naquele tempo São Paulo se afigurava como uma boa opção para se viver melhor neste Brasil. Um bom exemplo é o romance O Quinze de Rachel de Queiroz, publicado em 1930, sobre a grande seca que assolou o sertão nordestino em 1915, e o personagem Chico Bento decide se mudar para São Paulo: “Lá não tem sezão, nem boto, nem jacaré... É uma terra rica, sadia... [...] Terra de dinheiro, de café, cheia de marinheiro...”

Sem dúvida, boa parte do crescimento e diversidade de São Paulo deve-se à grande imigração de gentes de todas as partes do Brasil e do mundo, tal como aconteceu com sua irmã Nova Iorque – e com a bisavó Roma. Bem resumiu Mário de Andrade em 1926: “São Paulo é capaz de se apropriar de tudo o que as tendências, movimentos e invenções estrangeiras podem dar para riqueza e liberdade da gente.” E eu gosto tanto desta “terra do meu sertão” que até contribuí com um grande paulistano, meu filho Ivo.

Maior população italiana fora da Itália, idem japonesa fora do Japão, primeira cidade brasileira adotar códigos de endereçamento postal (sim, CEP) e de discagem telefônica direta à distância (DDD), primeira a ter bilhete único para transporte e órgão governamental especialmente para saberes e atividades circenses (o Centro de Memória do Circo)... E sempre há o que se dizer de uma cidade como São Paulo ,Sampa, Pauliceia, a Terra da Garoa... Após começar confessando, termino sentenciando: São Paulo me parece estar de acordo com o que sempre digo: “Cultiva tuas qualidades de modo que teus defeitos nem contem.”