Friday, February 17, 2023

THIS MAN HE TWEETS TONIGHT: DAVE DAVIES VERSUS ELON MUSK



This is a bilingual post; first in English, then in Portuguese.

Este texto é bilingue, primeiro em inglês, depois em português.

I have been studying the English language since March 1970, and I think I have a potential student, born in June 1971; guess who he is.

While you're guessing, here we go: do you know the word “kink”? It has several meanings: loose lint on ropes or clothes (“iron out the kinks”); something that looks odd or weird; something perverted, risqué or pornographic but still soft or subtle enough to be socially acceptable (“kinky sex”); and it's also the name of one of the most influential rock bands since the 1960s, The Kinks (those ackwainted with me know that this is the English band that speaks to me the most, but it doesn't matter now).

Many new people use some gimmick to gather attention from the public and the media in order to get success. The Kinks' early managers had the idea of promoting them as mildly perverted, and they went along with it. In the very first press feature about the band, on the 22th of February 1964 issue of the Melody Maker newspaper (reproduced below), Ray Davies, leader and guitarist, declared that he and Dave Davies, his brother and the other guitarist in the band, were “sisters”; and there are promotional shots of the Kinks dressed in leather jackets and brandishing whips (an example is in the sheet music above — and, yes, they look like circus lion tamers). It didn't take long for the band and management to realise that such boutique SM was rubbish, and they came up with something better, those hunting jackets. But many Kinks songs mention or suggest sex, orthodox or less so (“Lola”, “Monica”, “Mirror Of Love”, “The Way Love Used To Be”, “Out Of The Wardrobe”, “Animal”). This story also brings to mind another Kinks song, “Destroyer”: “Paranoia, the destroyer”, or rather a dominatrix, a song that is very appropriate for this time when, as the Rolling Stones said, “it's all secrecy and no privacy” and, due to the misuse of the “politically correct” stance, more and more people are offended by less and less. You may know the precept “freedom of speech, just watch what you say”; well, currently the virtual society is so sensitive and easily offended that care must be taken when mentioning “v i 0 l e n c e”, “s e x”, “ d i s g r a c e”, “T r u m p” and even, lo and behold, the Kinks.

Well, have you guessed who could be the English student of mine I mentioned? Yes, that's him, Elon Musk, co-owner of Twitter and a bunch of other companies, including aptly named ones like Neuralink and Boring. Let's see how the Kinks got into this story (in addition to Musk being born shortly after the Percy movie soundtrack was released), which can be read about here. With no immediate plans to put out new or unreleased recordings, the surviving members of the original Kinks lineup – the aforementioned Davies brothers and drummer Mick Avory – decided to commemorate the band's 60th anniversary with a retrospective compilation, entitled The Journey, and Dave started spreading news about it on Twitter. Well, that network was programmed to interpret “kink” as perversion, and Dave received a warning: “We put a warning on this tweet because it might have sentitive content.” Upon receiving this, Dave sent a message to this could-be English student of mine: “Dear @elonmusk, please stop putting warnings on everything from ‘the Kinks’. We are just trying to promote our Kinks music.” Shortly thereafter, Dave, who, besides being absolutely right, has been speaking English since before me, gave Elon Musk his first lesson: “The Kinks are a brand name. We have been called the Kinks since 1963." Then Musk or someone on Twitter took a hint and posted a message: “After review, we removed the sensitive content warning from one or more recent Tweets. Thanks for helping us catch that mistake.” Aw, how lovely can a social network be?

Or could it? Dave received a screenshot from someone else who tweeted, "Though they said the warning was removed on appeal... it's still there." So Dave almost wrote a song lyric: “That's impossible. The word 'robot' should be banned. We have robots running our lives. At least I'm a Kink and not a f*cking robot." Another Kinks fan quoted the title from the 1981 Kinks album: “Elon Musk, give the people what they want!” And Dave quipped: “Give people what Elon Musk wants.” Isn't he lovely – Dave, of course.

"Telepathy/for you and me/we can be/a unity", sang Dave in the 1980s. Indeed, telepathy is better than Twitter psychopathy...

And on to the Portuguese version:

Eu estudo o idioma inglês desde março de 1970, e acho que tenho um aluno em potencial, nascido em junho de 1971; adivinhem quem é. 

Enquanto vocês adivinham, vamos lá: conhecem a palavra “kink”? Tem vários significados: fiapos soltos em cordas ou roupas (“iron out the kinks”); algo que pareça estranho ou esquisito; algo pervertido ou pornográfico mas ainda suave ou sutil o bastante para ser aceito socialmente (“kinky sex”); e é também o nome de uma das mais influentes bandas de rock desde os anos 1960, The Kinks (quem me conhece sabe ser essa a banda inglesa que mais me diz, mas isso não vem ao kauso). 


Muita gente nova usa algum chamariz para público, imprensa e sucesso. Os primeiros empresários dos Kinks tiveram a ideia de promovê-los como suavemente pervertidos, e eles toparam. Logo na primeira matéria sobre a banda, para o jornal Melody Maker em 22 de fevereiro de 1964 (reproduzida acima), Ray Davies, líder e guitarrista, declarou que ele e Dave Davies, seu irmão e o outro guitarrista, eram “irmãs” (sim, “we’re sisters!”); e há fotos promocionais dos Kinks vestidos com jaquetas de couro e brandindo chicotes (um exemplo está na partitura mais acima - e, sim, eles parecem domadores de circo). Não demorou para a banda e os empresários perceberem que esse sadomasô de butique era bobagem, e descobriram algo melhor, aquelas jaquetas de caça. Mas muitas canções dos Kinks mencionam ou sugerem sexo, ortodoxo ou nem tanto (“Lola”, “Monica”, “Mirror Of Love”, "The Way Love Used To Be", “Out Of The Wardrobe”, “Animal”). O tema desta publicação remete também a outra canção dos Kinks, “Destroyer”: “Paranoia, a destruidora”, antes fosse uma dominatrix, canção esta bem apropriada para esta época em que, já diziam os Rolling Stones, “tudo é segredo e nada é privacidade” e, devido a mau uso da postura “politicamente correta”, cada vez mais as pessoas se ofendem com menos; parafraseando Millôr Fernandes, o que é espúrio se torna moralidade e vice-versa. E se antes já havia o preceito “freedom of speech, just watch what you say”, atualmente a sociedade virtual está tão sensível e melindrada que é preciso cuidado ao se mencionar “v i 0 l ê n c i 4”, “s e x 0”, “d e s g r a ç a”, “C o l l o r” e até, vejam só, os Kinks. 

Pois bem, já adivinharam quem poderia ser o meu aluno de inglês que mencionei? Sim, ele mesmo, Elon Musk, co-proprietário do Twitter e de um monte de outras empresas, incluindo algumas de nomes bem adequados, como Neuralink e Boring. Vejamos como os Kinks entraram nesta história (além de Musk ter nascido logo após o lançamento da trilha do filme Percy), que pode ser conferida aqui. Sem planos imediatos de lançar gravações novas ou inéditas, os membros sobreviventes da formação original dos Kinks – os citados irmãos Davies e o baterista Mick Avory – resolveram comemorar os 60 anos da banda com uma coletânea retrospectiva, intitulada The Journey, e Dave divulgou isso no Twitter. Pois bem, essa rede estava programada para interpretar “kink” no sentido de perversão, e Dave recebeu um aviso: “Colocamos um alerta neste tweet porque ele pode ter conteúdo ofensivo.” Ao receber isso, Dave disparou uma mensagem a este meu quase aluno de inglês: “Prezado @elonmusk, pare, por favor, de colocar alertas em tudo que venha de ‘the Kinks’. Só queremos divulgar nossa música dos Kinks.” Pouco tempo depois, Dave, que, além de estar cheio de razão, fala inglês desde antes de mim, deu a primeira aula a Elon Musk: “Os Kinks são uma marca registrada (“brand name”). Nós usamos o nome Kinks desde 1963.” Aí Musk ou alguém no Twitter se tocou e publicou uma mensagem: “Após verificação, removemos o alerta de conteúdo ofensivo de um ou mais tweets recentes. Agradecemos por ter nos ajudado a descobrir esse erro.” Mas não é muita fofura para uma rede social só? 

Até poderia ser, se Dave não tivesse recebido de outra pessoa twitteira uma captura de tela com uma mensagem: “Disseram que o alerta foi removido... mas ele continua lá.” Então Dave quase compôs uma letra de música: “Isso é impossível. A palavra ‘robô’ deveria ser proibida. Robôs estão comandando nossas vidas. Pelo menos eu sou um Kink e não uma p* de um robô.” Outro fã dos Kinks citou o título do álbum Give The People What They Want: “Elon Musk, dê às pessoas o que elas querem!” E Dave ironizou: “Dê às pessoas o que Elon Musk quer.” Esse, sim, é um fofo – Dave, claro.

"Telepathy/for you and me/we can be/a unity", cantou Dave nos anos 1980. Realmente, telepatia é melhor que a psicopatia do Twitter...

Friday, January 27, 2023

ARTIGO BASEADO EM “CAUSOS” REAIS: LEOPOLDO REY (1944/2023)


Não só a Áustria, a Grécia e a Bélgica tiveram seus reis Leopoldos; o Brasil também teve. Ou melhor, teve, tem e sempre terá, vivo e presente em sua obra e trabalho de pesquisa, na lembrança de quem conheceu a pessoa franca, sincera, irreverente e bem humorada e no exemplo para quem mais se aventurar no rádio, jornalismo e produção musical. Sim, falamos de Leopoldo Rey, falecido de problemas cardíacos em 20 de janeiro, e este artigo é uma breve recolha de sua obra, inclusive como meu amigo e parceiro em emissoras de rádio, jornais, revistas e até festivais de música.

UM POUCO DO COMEÇO



O cidadão Francisco Leopoldo Santos d’Arienzo surgiu em 17 de agosto de 1944 e logo revelou vocação para música, não tanto tocar ou cantar, mas sim como escritor e radialista. “Logo fiquei famoso como ‘o cabeludo da cidade’”; não demorou para Leopoldo contrair a síndrome de Francisco Alves, Luiz Gonzaga e Roberto Carlos, sendo chamado de “Rei do Rock” e gostando a ponto de se crismar “Leopoldo Rey”, com a distinção do “Y”. Ele chegou a me presentear com alguns de seus discos dessa época, como este compacto de John Lennon da foto acima. Logo ele criou este carimbo, promovendo seu nome de guerra e usando as iniciais de seu nome completo:

F L S D

REY

Sim, as iniciais dispostas desta forma lembram uma sigla psicodélica muito famosa, e a intenção de Rey foi essa mesma...

DISCOTECA REAL

Muitas das melhores famosas ou obscuras gravações do rock tornaram-se conhecidas do publico brasileiro graças a Leopoldo Rey e seus programas radiofônicos, como Rock Sandwich, Reynação e Momento do Rock; ele merece ser lembrado e divulgado ao lado de Big Boy, Jacques Kaleidoscopio, Kid Vinil e outros mestres.

 


Muito provavelmente você tem algum disco em que Rey participa de alguma forma. Um exemplo é a bela coletânea From 64 At 70, reunindo quase todos os maiores sucessos da primeira fase dos Kinks (1), e cujo texto da contracapa é dele. 


Temos também Teen Spirit, CD (com uma pequena tiragem em LP) inspirado no programa deste nome apresentado e produzido por Rey na FM 97, incluindo Okotô, Sepultura e Golpe de Estado, além de um texto do próprio Rey.




E há pelo menos uma gravação onde Rey aparece como compositor: “Mexa-Se, Boy”, versão do clássico do blues “Mannish Boy” de Bo Diddley, em parceria com Oswaldo Vecchione (embora não creditada como versão), contrabaixista e líder da banda Made In Brazil, e lançada no álbum Pirata II do Made em 1986. (2) 




Além disso, a voz de Rey pode ser ouvida em pelo menos um disco: o CD anexo a uma edição especial sobre Raul Seixas da revista Shopping Music, lançada em maio de 1998. Este disco inclui gravações inéditas de Raul e entrevistas dos anos 1980 por Marilia Gabriela, Pedro Bial, Kid Vinil, Valdir Montanari, André Barbosa Filho e, claro, Leepoldo Rey, os quatro últimos numa bela entrevista coletiva para o programa Rock Show da Excelsior AM em 1981. (Ah, sim: o texto desta revista é deste que vos escreve, e o disco quase incluiu a famosa confissão do plágio de “Rock Das Aranhas”, mas ficou de fora devido à qualidade sonora inferior às outras.)

 



Agora, Rey também chegou a ser vendedor de discos, ao menos pelo pouco tempo, na segunda metade dos anos 1980, que durou a loja Rebel Songs, na galeria Gemini, a que liga a Alameda Santos à Avenida Paulista. A Rebel Songs foi uma loja relâmpago, mas deu tempo para um “causo” que Rey me narrou. Foi a época do disco Yauaretê de Milton Nascimento, e a gravadora enviou um belo pôster promocional. Adivinhem quem foi visitar a loja e se encantou com esse pôster: Geraldo Vandré. Muita gente diz que ele finge loucura para não ser perturbado por simpatizantes da ditadura militar, e este “causo” talvez demonstre essa tese. Segundo Rey, Vandré viu o pôster e seguiu-se um diálogo assim:

- Vende esse pôster pra mim?

- Vender? Que nada, é material promocional da gravadora, eu te dou de presente e depois pego outro.

- Não quero de presente, faço questão de pagar!

- Ah, deixa de bobagem, eu te dou de presente!

- Não, eu quero pagar!

Ficaram nessa até que Rey capitulou:

- Tá bom, eu te vendo por preço tal.

E Vandré respondeu:

- Ah, muito caro, não quero!

E, antes de ir embora, ainda colocou uma bela cereja no bolo:

- Me diz onde eu posso expor esse pôster e cobrar ingresso! 

FAMILIA REAL

Tive com Leopoldo Rey a mesma surpresa agradável que quando conheci, por exemplo, o músico Mano Del Picchia e a cantora Cris Aflalo – a mesma surpresa que, por exemplo, Chico Buarque causou em quem conhecia seu pai Sérgio Buarque de Hollanda e seu parente Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira. Fiz “uma pergunta que você deve ouvir umas quatro vezes por dia” e me responderam: Mano é neto de Menotti Del Picchia e Cris é sobrinha do jornalista Armando Aflalo. Pois bem, ao saber que o sobrenome de Leopoldo Rey era D’Arienzo, perguntei: algum parentesco com o grande maestro e compositor argentino Juan D’Arienzo (1900/1976)? A resposta foi um “sim” mais que entusiástico, acompanhado de um “causo”. Parentes de Rey foram à Argentina e lá pegaram um táxi; o motorista era sociável e, conversa vai, conversa vem, ele, ao saber que estas pessoas passageiras eram D’Arienzo e parentes do maestro, ficou tão feliz que, vejam só, fez questão de não cobrar pela corrida. (3) Inclusive, fui encontrado por um LP de Juan d’Arienzo que até traz “Rey” no título – Juan era conhecido como “El Rey del Compás”, rei do ritmo, e “Rey del Tango” – , e eu disse a Rey que iria presenteá-lo com este disco em nossa reunião seguinte, que acabou não acontecendo...  

 


Outro toque de realeza foi o apelido de Christina Queen dado à saudosa primeira esposa de Rey, Maria Christina Fagundes. E imaginem a Rainha Elizabeth II atendendo ao telefone dizendo “aqui é a mãe do Charles”. Pois bem, Vicentina d’Arienzo (1913/1996) foi grande atriz, professora de educação física e nada menos que a primeira mulher a apitar um jogo de futebol no Brasil (Palmeiras, então ainda Palestra Italia, contra o Esporte Clube Santana, da cidade de Itapeva); em 1939 casou-se com o “oriundi” Luiz d’Arienzo Neto, com quem teve duas filhas e um filho. Pois bem, em algumas vezes em que telefonei para Leopoldo Rey, ela estava lá e atendeu; eu perguntava quem era e ela, tão mãe-coruja quanto simpática, respondia: “É a mãe do Rey!” Comentei sobre isso com o filhão e acrescentei: “Se ela é a mãe do Rey, então é a Rainha-Mãe!” Ele e ela gostaram tanto que, quando ela faleceu, Rey homenageou-a em sua coluna na revista On & Off dizendo: “A Rainha-Mãe se foi.”

PARCERIAS REAIS

Tive a honra e prazer de trabalhar com Leopoldo em muitas de minhas atividades: jornalista, radialista, produtor de eventos e até jurado de festival – além, é claro, de participar de seu programa de rádio e vice-versa. 

O meu primeiro contato de que me lembro com Rey foi exatamente em 2 de agosto de 1984, quando toquei com uma de minhas bandas, Galileu, no saudoso bar Albergue, de propriedade do também saudoso Lelo Cadillac, da banda Coke-Luxe, na rua Rui Barbosa. Rey estava na plateia, e esta foi sua impressão do Galileu (uma canja de quatro canções (4) ): “Algumas letrinhas eu achei interessantes.” Mal sabia eu que dali a um ano e meio meu programa Rádio Matraca encontraria na FM 97 uma Pasárgada e lá eu seria vizinho e amigo de Rey. (5)

Na virada dos anos 1980 para 1990 eu, já tendo me afirmado como jornalista, compositor, músico e radialista, arvorei-me em outra função: produtor de eventos, no Espaço Persona, onde praticamente residi de 1988 a 1993. Dois dos eventos que produzi no Persona, em parceria com Carmen Flores, cantora e proprietária do local, foram duas edições do Festival Persona de Música, e num deles Leopoldo Rey nos honrou como integrante do júri. E na mesma época, em março de 1990, eu e ele fomos jurados do quinto Festival de Música da ADC Eletropaulo; confiram estas amostras da cobertura do evento pelo tabloide da empresa, Notícias ADC Eletropaulo. (Leopoldo é o último à direita na foto; notem a presença de outras pessoas grandes parceiras, como o músico Johnny Boy.)

 


Trabalhámos juntos no Jornal da Tarde (6), de onde saímos em abril devido aos problemas financeiros causados pelo Terraplano C*ll**. Inclusive, participamos da cobertura do primeiro festival Hollywood Rock, em 1990. E segue abaixo uma pequena batalha de confete, tirada do JT de 11 de outubro de 1989 e da revista On & Off, edição 8, de 1993. (Sobre essa história de Aiatolá, explicarei no item seguinte.)




REAL HUMOR REAL

Ninguém da FM 97 escapou da galhofeira Rádio Matraca em nossos quase dois anos na emissora. Sidnei Moreno Lopes, mais que excelente imitador – do nível de um Geraldo Alves, com todo o respeito às novas gerações – , era um camaleão, e ele glosou Leopoldo Rey e seu programa Momento Do Rock como “Leopardo Gay e o Momento do Loki”. Rey, ele mesmo bem humorado, divertia-se com as gozações e as revidava. O Momento Do Rock era um programete onde Rey mencionava e comentava alguma data importante na história do rock e tocava uma gravação pertinente. Um dia Rey visitou uma gravação da Rádio Matraca e acabou participando; Sidnei começou a imita-lo inventando na hora uma data como “em 26 de julho de 1865”, e Rey atalhou: “Morreu a mãe do Sidnei!” Laert Sarrumor, pego de surpresa, até chamou o intervalo antes da hora... O programa foi ao ar no sábado seguinte e ninguém se divertiu mais do que, adivinhem, a mãe de Sidnei Lopes, que, muito viva e muito bem, veio nos dizer “então vocês me mataram!” Realmente, chiste trocado não dói...

 


Um belo dia apareci na 97 com cabelo curto, barba grande e roupa escura, e, mal cheguei, Rey disparou: “Olha o aiatolá!” Sim, era época de mais um entre tantos lideres detestavelmente radicais e extremistas, o Aiatolá Khomeini. Então eu mesmo aproveitei a deixa: “Aiatolá Mugnaini!” E Rey e outras pessoas na 97 seguiram me chamando de Aiatolá mesmo anos após eu ter saído da emissora, em 1989. O jeitão de adorável rabugento bem-humorado era excelente assunto para desenhos como este logo acima que fiz em 1994 para a revista Dynamite, inclusive trocadilhando com o filme disneyano O Rei Leão. No ano seguinte compus um tema no estilo NWOBrHM (New Wave Of Brega Heavy Metal), “Reyclamão”, e a primeira reação de Rey foi: “Pô, Ayrton, pára de falar que eu só reclamo, minha família já está me enchendo o saco!” 

E QUEM é REY NUNCA PERDE A MAJESTADE

Sei que esta breve recolha é apenas uma amostra da obra de Leopoldo Rey, mas muito mais pode ser lido em locais como Maquiavelli, Olhar Dinâmico, Startrips e um dedicado ao proprio.

E desde já me candidato a escrever um livro sobre nosso velho homem do rock em Atibaia e no mundo. “Brincadeira?!”

(1) Num belo exemplo de “supercompensação” e de “antes tarde do que nunca”, os primeiros sucessos dos Kinks, quase todos inéditos no Brasil, deixaram de sê-lo 25 anos depois, e em dose dupla: o ano de 1989 começou e terminou com nada menos que duas coletâneas brasílicas da banda, esta From 67 At 70, lançada em março, e uma Greatest Hits da RGE, em setembro. A primeira nasceu de licenciamento das gravações da Movieplay portuguesa para a Brasidisc (que, para idealizar o titulo em inglês, fez um acordo não intencional com Tarzan, disso nosso querido Leopoldo Rey não teve culpa, embora ele mesmo tenha escrito erroneamente o sobrenome do contrabaixista original dos Kinks, Pete Quaife, como “Quaiffe”); já a RGE havia obtido licença diretamente da gravadora inglesa PRT, então a detentora destes fonogramas. Curioso é estas duas coletâneas totalizarem 25 faixas mas terem apenas oito em comum, nenhuma sendo “Apeman”, falha de ambas as coletâneas, e a RGE se esqueceu ainda de outro grande hit, “Tired Of Waiting For You”...

(2) O Made In Brazil lançou simultaneamente dois LPs ao vivo, Pirata I e Pirata II, reunidos num CD simples, intitulado simplesmente Pirata, em 1997 – e desta vez creditando “Mexa-Se, Boy” como versão de “Mannish Boy”.

(3) Pois é... Quantas pessoas brasileiras demonstram tamanho orgulho de celebridades suas conterrâneas antes de nestas ficarem procurando e enfatizando erros ou defeitos?

(4) A formação do Galileu nesse show era Fabian Chacur, vocal; Wagner Amorosino, teclado, violão e vocal; "Lord" Mauricio Bardella, contrabaixo; Ademir "Bonitão" Benedicto, bateria; e Ayrton Mugnaini Jr., arranjos, guitarra e vocal. Essa canja foi gravada, e uma amostra vai aqui

(5) E "o bom filho à casa torna"; surgido na USP FM em 1985, o programa Radio Matraca passou pelas FMs 97 e Gazeta, voltando à USP em 1997 - pois é, a volta pode comemorar jubileu de prata.

(6) O que falta para o lançamento digital do acervo do Jornal da Tarde e, por sinal, da Folha da Tarde?


Wednesday, January 25, 2023

SÃO PAULO: BEM MAIS QUALIDADES QUE DEFEITOS

Neste aniversário da cidade de São Paulo, resolvi homenagear a ela e também a uma ilustre pessoa paulistana que, infelizmente, não alcançou esta data: a jornalista, editora e poetisa Thais Matarazzo, também emérita pesquisadora e memorialista de musica e cultura brasileiras e portuguesas e dona da Editora Matarazzo. Tive a honra e prazer de participar de muitos livros desta editora, inclusive Vamos Falar De São Paulo II?, lançado em 2016; segue abaixo meu texto para este livro - este, aliás, merece ser lido inteiro e procurado na editora ou em sebos.




SÃO PAULO: BEM MAIS QUALIDADES QUE DEFEITOS
Por Ayrton Mugnaini Jr.

Vou começar confessando: amo São Paulo e nela ter nascido – mas nem sempre a amei. Dos 12 aos 22 anos morei nas menores e mais tranquilas Sorocaba e Lins, e desenvolvi uma antipatia pela metrópole: eu me queixava de muita poluição, trânsito sempre parado (ainda não havia metrô nem corredores de ônibus e veículos viviam trombando com dinossauros – sim, havia até um tipo de ônibus enorme apelidado de “dinossauro”)... Quando minha família retornou a Sampa em 1979, resisti o quanto pude, inclusive indo todo fim de semana a Sorocaba para tocar com bandas que eu havia formado. Até que em 1980 acabei me enturmando com pessoas de Sampa, passei no exame para jornalismo da Cásper Líbero, e voltei a ser paulistano de vez, embora falando e pensando com sotaque do “interiorrr”. E desde então me identifico sempre com a última cena do filme O Cangaceiro de Lima Barreto: “Nasci aqui, vou morrer aqui, esta é a terra do meu sertão!” (A autora deste e outros diálogos do filme é a grande escritora cearense Rachel de Queiroz, que logo voltará à nossa conversa.)

Sim, Sampa não é cidade para corações fracos, mas quem não gosta e quiser gostar acaba se acostumando e gostando. Basta lembrarmos duas homenagens musicais do tipo “morde-e-assopra” de pessoas “estrangeiras” sobre a cidade, com alguns comentários meus. Uma é “São São Paulo” (ou “São Paulo, Meu Amor”) do baiano Tom Zé, composta em 1968:

São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor

São oito milhões de habitantes (1)
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito

São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor

Salvai-nos por caridade
Pecadoras invadiram
Todo o Centro da cidade
Armadas de rouge e batom
Dando vivas ao bom humor
Num atentado contra o pudor
A família protegida
Um palavrão reprimido
Um pregador que condena
Uma bomba por quinzena (2)
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito

São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor

Santo Antonio foi demitido
Por ministros de Cupido
Armados da eletrônica
Casam pela TV
Crescem flores de concreto
Céu aberto ninguém vê
Em Brasília é veraneio
No Rio é banho de mar
O país todo de férias
E aqui é só trabalhar
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito

São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor

(1) 8 milhões de pessoas já era muita gente – um décimo da população brasileira – em 1968, imaginem os 12 milhões de 2016...
(2) A censura obrigou Tom Zé a substituir “bomba” por “festival”, mas na gravação ainda se ouve um coro dizendo “bum!”

E em 1971 o cantor e compositor carioca Marcus Pitter fez sucesso com o charleston-rock “Esta Cidade É Um Monstro”, de sua autoria:

Há vinte e poucos anos
Eu nasci neste lugar (1)
São Paulo, minha terra,
Meu chão, meu lar
Aqui eu nasci,
Me criei e cresci
E ao passar do tempo
Pouco a pouco me perdi
Multidão, poluição, construções,
Jatos cortando o espaço sem fim
Multidão, poluição, construções
A Natureza já morreu aqui
Esta cidade é um monstro
Mesmo assim, gosto daqui

(1) Tudo bem, o carioca Marcus Pitter tem licença poética para dizer em letra de música que nasceu em Sampa, do mesmo modo que o ítalo-paulista Mário Zan compôs “Sou Gaúcho”...

E por falar em licença, peço-a para trazer uma letra de canção de uma pessoa paulistana – por sinal que eu mesmo, e esta canção foi lançada em 2004. A gravação pode ser ouvida aqui, e a letra segue abaixo:

NÓS QUE AMAMOS SÃO PAULO
Ayrton Mugnaini Jr.

Eu me lembro da infância que passei
Lá no bairro de Santana
Um dia eu cresci, mas antes me casei
Mudei pra Vila Mariana
Hoje moro na Vila Prudente
Cada bairro de São Paulo
É uma cidade diferente
Mas eu sempre dou um jeito
A cidade inteira cabe
No lado esquerdo do meu peito

Dizem que esta cidade é um mundo
De tão imensa e multiforme
Mas eu penso diferente, que o mundo
É uma São Paulo enorme
Esta cidade é um gigante, um Frankenstein (1)
De concreto, ferro e sangue
Nem direi mais o que tem
Pelo que ela tem de mau eu até choro
Mas pelo que tem de bom
É nela mesmo onde eu moro

Eu já morei em mil bairros diferentes
Mas o lugar onde eu mais vivo
Não é em Santana ou Vila Prudente
É nos pontos de coletivo
Ainda tem muito problema, é verdade,
Mas nós que batalhamos
E amamos esta cidade
Podemos dizer sem medo e sem pausa:
Se em São Paulo dá pra viver
É também por nossa causa

(1) Licença poética até para mim mesmo: eu sei que Frankenstein não é o nome daquele Borba Gato estrangeiro e sim do cientista que o criou, mas tudo bem.

São Paulo até que não se sai mal para uma cidade que tanto cresceu em tão pouco tempo (“a cidade que mais cresce no mundo”). Em 1916 todo o Estado de São Paulo contava 3,3 milhões de almas, e a capital não ia muito além do Pátio do Colégio. O Brasil praticamente se limitava ao Rio de Janeiro e à Bahia, o resto era interior, e o “Estado Bandeirante” era pouco mais que um corredor para transporte do ouro vindo de Minas Gerais e um quintalzão ótimo para se plantar café... Realmente, se o Rio de Janeiro é nossa Princesinha, nossa “Cinderela”, São Paulo se revelou bom exemplo de “Patinho Feio”.

Mas já naquele tempo São Paulo se afigurava como uma boa opção para se viver melhor neste Brasil. Um bom exemplo é o romance O Quinze de Rachel de Queiroz, publicado em 1930, sobre a grande seca que assolou o sertão nordestino em 1915, e o personagem Chico Bento decide se mudar para São Paulo: “Lá não tem sezão, nem boto, nem jacaré... É uma terra rica, sadia... [...] Terra de dinheiro, de café, cheia de marinheiro...”

Sem dúvida, boa parte do crescimento e diversidade de São Paulo deve-se à grande imigração de gentes de todas as partes do Brasil e do mundo, tal como aconteceu com sua irmã Nova Iorque – e com a bisavó Roma. Bem resumiu Mário de Andrade em 1926: “São Paulo é capaz de se apropriar de tudo o que as tendências, movimentos e invenções estrangeiras podem dar para riqueza e liberdade da gente.” E eu gosto tanto desta “terra do meu sertão” que até contribuí com um grande paulistano, meu filho Ivo.

Maior população italiana fora da Itália, idem japonesa fora do Japão, primeira cidade brasileira adotar códigos de endereçamento postal (sim, CEP) e de discagem telefônica direta à distância (DDD), primeira a ter bilhete único para transporte e órgão governamental especialmente para saberes e atividades circenses (o Centro de Memória do Circo)... E sempre há o que se dizer de uma cidade como São Paulo ,Sampa, Pauliceia, a Terra da Garoa... Após começar confessando, termino sentenciando: São Paulo me parece estar de acordo com o que sempre digo: “Cultiva tuas qualidades de modo que teus defeitos nem contem.”

Thursday, April 21, 2022

ANGELI E A MUSICA: GRANDE CAPISTA E QUADRINHISTA... E QUASE CANTOR

 

Pena o cartunista e quadrinhista paulistano Angeli ter anunciado o fim de sua carreira por ter contraído afasia (1). Com obra grande em todos os sentidos, Angeli retratou o submundo, a porralouquice e a escrotidão de forma satírica o suficiente para ridicularizar e fazer rir, mas ao mesmo tempo com humanidade e elegância o suficiente – inclusive, a meu ver, ainda melhor do que Robert Crumb, óbvia e grande influência – para ser apreciado até por não fãs de quadrinhos underground. E venho por meio deste homenageá-lo pelo lado musical.

Assunto é o que não falta, e não apenas no rock. Basta lembrar suas sátiras ao rock carioca (“na minha banda tem duas gatinhas que fazem um vocalzinho”), à bossa nova e às pessoas bossaminions (“João é gênio! João é Deus! João é João!”) e à critica musical metida a besta (na pessoa do personagem Rui Resenha). E Angeli tem lugar no livro que estou escrevendo sobre a Disney e a música brasileira graças a desenhos como este:


E Angeli é autor de algumas capas de discos. Talvez sua primeira capa tenha sido uma das ultimas grandes capas de compactos brasileiros (2), do segundo megahit da banda Magazine, “Tic-Tic Nervoso”, lançado em julho de 1984. Certamente, hoje a contracapa levaria Angeli, a banda e a gravadora aos tribunais, ou pelo menos cancelamento, por pedofilia...




Mas antes desta capa Angeli desenhou pelo menos uma contracapa, para o primeiro álbum-solo de Paulinho Boca de Cantor, sem titulo, lançado em outubro de 1979.



Lembremos também três coletâneas de rock com diversos/as artistas. Uma é o LP Neo Rock, de 1984. (Um atrativo especial deste disco é o texto de contracapa escrito por, vejam só, Ruy Castro. Não, não é Rui Resenha, é Ruy Castro mesmo, talvez a última pessoa de quem se esperaria um texto sobre rock brasileiro dos anos 1980, apreciador de bossa nova e de música estadunidense dos anos 1940 e que considera composições de rock como “garranchos”. Neste disco Ruy é até simpático para com o rock brasileiro dos anos 1980: “Um dia, o Brasil inteiro terá 14 anos e seremos todos felizes para sempre.”)

 



Outra coletânea pegou a onda de discos-tributos (é proibido compor, diz o mercado, eu vi) dos anos 1990: Rei, lançado pela Sony em novembro de 1994 e reunindo canções de Roberto Carlos nas interpretações de artistas como o Barão Vermelho, Blitz e Carlinhos Brown.



E a terceira é uma das muitas fitas cassete com belos livretos informativos patrocinadas pela empresa BASF (3): Rock In Brasil – O Balanço Das Gerações, lançada em junho de 1987.

Há pelo menos uma capa de Angeli para disco inspirado na obra dele próprio: um single independente de 12 polegadas do artista performático Lord K, lançado em 1988, cada lado homenageando um personagem, “Rê Bordosa” e “Rhalah Rikota” – esta em duas versões, proibida (“se você tem andado meio brocha [...] Rhalah dá mais de quatro sem sair de cima”) e liberada (“se você tem andado de galocha [...] Rhalah pagou o pato mas não perdeu a rima”).


E Angeli tem muito a ver com a banda Lingua de Trapo. Além de shows e eventos onde o vocalista Laert Sarrumor interpretava Bob Cuspe (e Angeli desenhou a orelha do primeiro livro de Laert Sarrumor, Mil Piadas Do Brasil) e o saudoso guitarrista Lizoel Costa se revelava o “Meiaoito preferido” de Angeli, este foi entrevistado uma vez no programa Radio Matraca; surgiu a ideia de ele cantar uma canção, acompanhado ao violão por este que vos tecla, e o resultado foi esta versão samba-canção-rock de “Ela Disse-Me Assim” deLupicinio Rodrigues – , completo com a opinião sincera e imparcial do filho de Angeli, presente na emissora (na época a FM 97) com o paizão.

Algumas informações para este texto são desta pagina. Curiosidade adicional: o cidadão Arnaldo Angeli Filho (4) é primo em terceiro grau (os pais de ambos eram primos-irmãos) de Valdir Angeli, meu parceiro no hit “Rebel Dog Blues” e também capaz de brincar de cantor em ocasiões como esta, em 1986, imitando Johnny Rottencantando “Yesterday”.

Notas:

(1) Cabe explicação sobre essa doença e esperança, se não de cura, de pelo menos administração, e aqui vai uma

(2) Em 1985 as grandes gravadoras brasileiras, que são empresas visando lucros, imagina se não fossem, resolveram parar de lançar compactos de 7 polegadas, dedicando-se apenas a LPs e compactos de 12 polegadas.

(3) Outros belos documentários sonoros patrocinados pela BASF em fita cassete, formato muito popular até os anos 1990, incluem Antologia Da Sátira Brasileira, de 1985, e Canto Livre, O Grito Da Raça, comemorando os cem anos da abolição oficial da escravatura no Brasil.

(4) Nascido em 31 de agosto de 1956, Angeli é citado em meu samba "Virginiano", lançado em 1992.

Tuesday, April 12, 2022

UMA BELA MATÉRIA DE CAPAS: HOMENAGEM A ELIFAS ANDREATO (1946/2022)

 


Ouvistes o que foi dito: "Não se julga livro ou disco pela capa". Certo, mas uma embalagem bonita e funcional não machuca ninguém, pelo contrário, valoriza o produto em todos os sentidos. O desenvolvido capitalismo ianque e europeu aceita e estimula até empresas especializadas em capas de discos, como as saudosas Hipgnosis e Pacific Eye & Ear. Da América do Sul, este que vos escreve não se lembra de empresas ou de artistas individuais especializados (as) em capas de discos, mas sim de pessoas artistas gráficas, ilustradoras e caricaturistas que brilharam nesse serviço, como o argentino Juan Gatti e, no Brasil, Miécio Caffé, Lan, Juarez Machado, Cesar Villela na gravadora Elenco, Joselito na Musidisc e na RCA, Tebaldo, Aldo Luiz, Oscar Paolillo, Cafi e... Elifas Andreato, autor de muitas capas de livros, cartazes, cenários e figurinos de peças e shows, fascículos e, o que nos interessa agora, capas de discos, cerca de trezentas.

PONDO BANCA



Infelizmente falecido agora em 29 de março de infarto aos 76 anos, o ilustre paranaense Elifas Vicente Andreato teve o melhor tipo de fama: muita gente  conhece e admira sua obra sem saber que é dele. Na música brasileira esse momento tem até data, 8 de junho de 1970, quando o Brasil realmente amanheceu mudado para melhor (1): nesse dia estreou nas bancas de revistas a coleção de fascículos & discos História da Música Popular Brasileira da editora Abril, projeto sem precedentes e com poucos iguais em termos de pesquisa, popularização e acabamento gráfico e técnico (2). Elifas está nos créditos, parte das mais importantes e das menos lidas...

 



Ilmar Carvalho elogia Elifas não nominalmente no Correio da Manhã de 11 de junho de 1970


Esta coleção foi um dos grandes marcos da estreia de Elifas como diretor de arte da Abril Cultural, divisão de fascículos da Abril. (3) E ele marca presença no livro que estou escrevendo sobre a Disney e a música brasileira graças a outro seu trabalho na Abril: a coleção Estorinhas De Walt Disney (4), lançada em janeiro do mesmo ano.




PALHAÇOS E LÁGRIMAS

Na música popular costumam ser lembradas as categorias de intérprete e, não muito em seguida, a de compositor (a). Nos anos 1980 acenderam-se merecidos holofotes para duas outras importantes categorias da indústria cultural: a pessoa arranjadora e a autora de capas de discos – mas por um lado negativo. Explicarei. Ao lado de grandes como Radamés Gnattali, Rogério Duprat e Miguel Cidras, um nome começou a ser citado como exemplo do que arranjadores não deveriam ser. Sim, ele mesmo, Lincoln Olivetti (1954/2015), sem dúvida competente e talentoso, mas, de tão requisitado, passou a se repetir, tornando-se o artista brasileiro mais formulaico depois do imbatível Roberto Carlos. (5) Pois aconteceu o mesmo com Elifas, embora, felizmente, por muito menos tempo, em menor grau e mantendo boa qualidade.

Homem étudo palhaço”, proclama um blogue carioca de humor feminista. Artista musical também? Elifas Andreato marca ilustre presença em outro livro que estou escrevendo, sobre a música brasileira e o circo, pois muitas de suas capas, cenários e figurinos têm inspiração circense, mas em várias delas ele demonstrou tendência a transformar todo e toda artista em palhaço triste. “Os palhaços sempre me fascinaram, talvez porque eu os veja como a ideia mais bem acabada do artista, agentes da esperança, capazes de expressar a felicidade do homem num instante, no momento”, resumiu Elifas. Esta fase lhe inspirou boas capas – mas com uma repetição aquém da alta média de sua obra. Senão, vejamos.

 


 

Casa De Brinquedos, Toquinho e outros/as (Ariola, agosto de 1983)
Clube Da Criança, incluindo Carequinha, Patricia (futura Marx, mas não contem a ninguém) e uma pessoa apresentadora cujo nome omitimos para evitar repugnância em quem gosta de crianças (RCA, março de 1984)
O Sorriso Ao Pé Da Escada, Jessé (RGE, junho de 1983 - e Elifas aparece também como compositor em parcerias com Jessé)
Aqualouco, Grupo Acaru (Café/Fermata, 1981)
Cenas, Roberto Riberti (Chantecler, junho de 1979 - insatisfeito com a baixissima vendagem, Riberti relançou o disco de forma independente ainda nesse ano)
Elis Vive, Elis Regina (coletânea de gravações de 1965 a 1981; Elenco, janeiro de 1984)

Em 1975 Roberto Moura, jornalista d’O Pasquim, elogiou a capa do álbum desse ano (sem título e que inclui “Amor À Natureza”) de Paulinho da Viola nestes termos: “uma apresentação tão sóbria quanto era possível a Elifas Andreato”. Sete anos depois, Moura esculhambou o show Mel de Maria Bethânia: “A direção de Wally Salomão inexiste. A regência [no jornal saiu “agência”] de Perinho Albuquerque é constrangedora [...] arranjos redundantes e banais. Não escapam sequer os cenários de Elifas Andreato, em seu pior momento.” E em 1980 Moura, com seu belo nome de colírio elogiando o que lhe faz bem ao olhar, resume como “magnífica” a capa do LP de Adoniran desse ano, ressaltando que tal detalhe contribui para este ser o álbum mais elaborado do Poeta do Bixiga e de toda Sampa.

A Folha de S. Paulo chegou a afirmar que o pior disco de música brasileira seria de Fagner interpretando canções de Gonzaguinha – outro artista que tardou a ser valorizado – com arranjos de Lincoln Olivetti e capa de Elifas. Uma gozação mais afetuosa está no único LP do saudoso humorista e músico Serginho Leite (1955/2011) (sem título, lançado pela Som Livre em maio de 1984), na faixa “Salsa Pra Ilha”, onde Serginho encarna o personagem Billy Gomez, cantor ansioso por sucesso mas, não sabendo o que quer, se submete às gravadoras que também não sabem mas pensam saber (ouça essa faixa e, melhor ainda, o disco todo aqui):

Sou artista importante

Tenho gravadora multinacional

Sou de nível internacional

Fui vaiado num festival

Já fiz disco em Los Angeles

Capa do Elifas, Tárik gostou

FM me boicotou

Meu trabalho não emplacou (6) 

Outra sátira às capas de Elifas é Brincando Com Fogo do Língua de Trapo, de 1992; por sinal, esta capa, idealizada por Cassiano Roda e desenhada por Rodval Matias, é grande exemplo de sátira bem-feita a ponto de funcionar como arte, chegando a ser eleita a melhor capa brasileira do ano pela revista Bizz.


Eu mesmo cheguei a fazer uma piada com as capas de Elifas – inédita até este momento. Meu segundo lançamento musical, a fita cassete Brega Segundo Brega, lançada em outubro de 1985, é o único a não ter ficha técnica nem créditos de autoria. É que tudo isso iria sair num luxuoso encarte (luxuoso por meus padrões) que acabou não saindo... Uma das faixas, “Os Metaleiros Também Amam”, foi a inspiradora desta sátira não somente a Elifas mas também ao heavy-metal, que também se tornava gênero formulaico graças a tantos imitadores de Iron Maiden e Motorhead. Notem as cerifas nas letras... E percebe-se que antecipei a banda Massacration em quase 20 anos. (7)

 


Mas quase em seguida, em 1986, este galhofeiro elogiou bem humoradamente Elifas na revista Somtrês, ao comentar positivamente o álbum Dezembros de Maria Bethânia: “Elifas Andreato prova aos desavisados que não vive só de boneca morta e palhaço chorando.” Realmente, um artista como Elifas não se mede por uma parte de sua obra, e a música brasileira tem muitas boas capas que “nem parecem de Elifas”; aí vai uma amostra.

 



Nave Maria/Bandança, Tom Zé (RGE, novembro de 1984)
Almanaque, Chico Buarque (Ariola, novembro de 1981)
Trocando "Figura", Jean & Paulo Garfunkel, Celso Viafora e César Brunetti (Copacabana, novembro de 1986)
Perto De Casa, Rolando Boldrin (RGE, abril de 1991)
Pastoril Do Faceta, Faceta (Clack/WEA, novembro de 1980)
Carrancas, João Ba (independente, 1989)
Eu Canto Samba, Paulinho da Viola (RCA, janeiro de 1989)
Um Conto Que Virou Canto, Thelma Chan e corais infantis (independente, novembro de 1991)
Dezembros, Maria Bethânia (RCA, novembro de 1986)
Vânia Bastos, Vânia Bastos (Copacabana, novembro de 1986)


BASTAM DOIS RISCOS NUMA FOLHA QUALQUER


Até meados dos anos 1970 a CBS tinha como grande orgulho ser a mais brega das grandes gravadoras brasileiras, especialmente nas capas, sem encartes e quase sempre simplonas, “tudo pobreza”, como resumiu Ezequiel Neves; impossível imaginar a CBS investindo em artistas gráficos como Elifas, mas com o tempo isso aconteceu, após a transformação da gravadora em Sony Music no fim dos anos 1980, cujos lançamentos incluíram Martinho Da Vida (1990), Moleques De Rua (1992) e uma bela série de CDs, Escolas de Samba/Enredos, de 1994, cujas capas couberam a Elifas.

 

Tarik de Souza no Jornal do Brasil, 13 de abril de 1980.


“Tudo pobreza”? Pois bem, a competência e criatividade de artistas como Elifas Andreato não dependem de verba ou espaço. Basta lembrarmos dois exemplos extremos, por coincidência ambos de cantoras. Um é o álbum Lápis De Cor de Fátima Guedes (EMI, abril de 1980), de produção apurada, sendo inclusive a primeira capa de disco em todo o mundo encadernada com espiral, imitando caderno escolar (8). O outro é a singela mas bonita e eficiente capa do primeiro disco de Vânia Bastos (Copacabana, novembro de 1986), tão-somente uma bela foto na frente – a fotogenia e simpatia de Vânia ajudam muito e até bastam – e as letras e ficha técnica atrás. Sim, a qualidade de uma capa de disco não depende de ela ser dupla ou quíntupla, incluir dez pôsteres e envelopes, luzinhas coloridas ou outros, como se diz, disfarces para encobrir música que não tenha a mesma qualidade.


UM RECADO NA PORTA: EU E ELIFAS


Falei da presença de Elifas em livros que estou escrevendo. Pois bem, o mestre marca ilustre presença num livro que já escrevi: Adoniran – Dá Licença De Contar, lançado pela Editora 34 em 2002; entrevistei-o rapidamente sobre sua capa para o álbum Adoniran E Convidados. (9) E posso dizer que estou num disco que tem capa de Elifas: Um Conto Que Virou Canto, de corais infanto-juvenis com regência de Thelma Chan, lançado de forma independente em 1991 e onde me revelei para o público infanto-juvenil, participando como músico e compositor e lançando meus quase-sucessos “Isto É Samba” e “Nanico”. (10)


ALGUNS DETALHES FINAIS


Há pelo menos dois livros sobre Elifas, belas flores que ele recebeu em vida. Uma, aliás, ele mesmo plantou, o autobiográfico Impressões (Bamerindus, 1993); o outro é Vai, DJ! O Intrigante Caso Dos Discos Perdidos, de João Rocha Rodrigues (Palavrinhas, 2021), que inclusive pode ser lido aqui  .




Notemos que Elifas era tão criativo que suas capas nada ou quase perdiam na transição para formatos de tamanhos menores que LPs, como fita cassete e CD; algumas até já nasceram pequenas e notáveis neste formato, como a supramencionada (gostaram?) série dedicada a sambas-enredos.

E notem que, para ressaltar neste artigo a produtividade e criatividade de Elifas, mostrei apenas uma capa de cada artista...

 Notas:

(1)   Houve quem louvasse como uma data dessas o lançamento da caixa Ensaio Geral de Gilberto Gil (8 de março de 1999), projeto bem-vindo e grandioso, mas ainda refém de vícios da gravadora brasileira, omitindo algumas faixas devido ao limite draconiano brasileiro de 14 faixas por CD.

(2)  Os fascículos tinham páginas coloridas e os LPs, de dez polegadas, traziam oito a dez faixas, a preço de lançamento de sete cruzeiros, preço mais que excelente; um compacto duplo sem encarte algum custava cerca de seis...

(3)  Elifas participa também da segunda edição do projeto, Nova História da Música Popular Brasileira, lançada em 14 de setembro de 1976.

(4)  Esta coleção voltou às bancas em dezembro de 1974 com nome gramaticalmente mais correto, Historinhas de Walt Disney (não “Estorinhas”).

(5)  Lincoln Olivetti tem sido louvado por revisionistas como “papa do sacolejo” e “mago do pop”... Pois é, depois de 20 anos tudo fica bom e após três décadas tudo se perdoa.

(6)  Sim, a letra no encarte do LP cita o grande jornalista Tárik de Souza (embora na gravação Serginho cite outro emérito batalhador pela música brasileira na imprensa, Mauricio Kubrusly), e a faixa começa com uma das muitas vinhetas do disco que satirizam João Gilberto.

(7)  Foi nesta fita que, além de “Os Metaleiros Também Amam”, lancei meus quase-sucessos “Marcinha Ligou”, “Abdômen De Presidente”, “Galinhagem” e “Noites Sob O Luar”.

(8) Elifas, tão esperto quanto criativo, patenteou a ideia de capa de discos com espiral, e tenho em mãos o outro único exemplo que conheço: o álbum triplo Cartas Celestes do pianista Fernando Lopes, lançado pela Eldorado em 1982 e cujos créditos incluem “Fechamento espiral: Elifas Andreato”. Realmente, uma criação muito mais prática que o "Discobjeto" do álbum Transa de Caetano Veloso – que, por sinal, recebeu de Elifas uma de suas melhores capas, a do LP Bicho.

(9)  O álbum foi lançado sem título, mas algumas reedições o chamam de Adoniran E Convidados.

(10)                     O disco inclui ainda outra canção minha, o menos lembrado mas por mim também querido “Samba Da Paquera”. E cabe aqui um grande alerta: este disco teve reedições em CD com faixas a menos e até sem a capa de Elifas...