Monday, October 17, 2016

FIEIS SOLDADOS PELA PÀTRIA CANTADOS: A MÚSICA E A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL - BRASIL

Guerras só têm um grande defeito: as batalhas. Chefes de Estado declaram guerra, mas quem a realiza são as tropas. Tourada, briga de galo, farra do boi, rodeio e semelhantes barbaridades são "justificadas" pela tradição. e na guerra se consegue fazer milhares de vezes pior por questões que poderiam e deveriam ser resolvidas bem mais pacificamente... Como se diz, na guerra e no amor vale tudo – e nas guerras e nos processos judiciais ninguém ganha. Mas não se pode negar que grandes conflitos têm grande importância histórica e influência sobre as artes. inclusive no humor – HQs como Recruta Zero, filmes como Mash e Ombro, Armas; seriados de TV como Guerra, Sombra E Água Fresca e nosso Mário Alimari e seu Quartelzinho Pé-Com-Pano na TV (alguém se lembra? – e na música. Pois bem, uma conversa sobre a Primeira Guerra Mundial com o amigo Oli Rodrigues me inspirou a escrever aqui algo sobre música inspirada pelo conflito; acabei descobrindo tanta coisa que achei melhor separar tudo em dois artigos, sobre música brasileira e estrangeira.


(Anúncio no jornal O Estado de São Paulo de 14/2/1918.)

Numa brevíssima cronologia para situar tudo, a Grande Guerra – assim chamada até estourar a ainda pior Segunda Guerra Mundial (e daqui em diante vamos nos referir a elas como IGG e IIGG) começou em 28 de julho de 1914 e terminou em 11 de novembro de 1918, com o Brasil permanecendo neutro até ter navios bombardeados pela então encrenqueira Alemanha.em outubro de 1917 (a simples menção desta data deve trazer lágrimas aos olhos de muito(a) esquerdinha, mas isso é outra história, companheiros(as)). Mesmo enquanto neutro, o Brasil sofreu os efeitos da IGG. A briga com a Europa, além de abrir caminho para maior presença econômica e cultural dos EUA no Brasil, causou dificuldade em importações e exportações e aumento geral de preços e – adivinhaste? – impostos, e com a entrada do Brasil na guerra a lucidez antibelicista foi encoberta pelos clarins exortando a cumprir o dever cívico de, como foi bem cantado, “morrer pela pátria e viver sem razões” (e, afinal, “não contamos os mortos quando Deus está do nosso lado”, como disse outro grande trovador, Dylan, que não ganhou um Nobel à toa). Tudo isso foi bem registrado pela música popular brasileira, e aqui vai um resumo.

Um dos grandes sucessos musicais de 1914 é a toda caipira “Cabôca De Caxangá” de João Pernambuco, e quando a IGG estourou um certo ”Cabôco do Norte” não perdeu tempo em usar a melodia para compor e gravar a sátira “Confagração Oropéa”:
Lá fora a Oropa
Continua em pé de guerra
Morre gente como terra
Porque as folhas toda diz
Até agora
não se sabe já quem ganha
Se a França ou a Alamanha,
Se Berlim ou se Paris
Quem vai falar com razão
É a boca do canhão
Os alamão
Que se internaram na fronteira
Pensou que era brincadeira
Dar nos belga e nos francês
E foram entrando
na cidade de Liege
Para virar aquilo em frege
E triunfarem de uma vez
Mas os belga resistiu
Como assim nunca se viu
(falado)
Os belga são danados.
Diz que os francês
pretenderam entrar na Alsácia
Mas ali diz que não passa
Nem francês nem alamão
E que o solo
tá virado a dinamite
Que o caboclo não primisse
Nem botasse o pé no chão
É só passar no botão
Aquilo vira em carvão
(falado)
Nossa senhora, eu é que não vou lá

Mais séria é “Partida Para A Guerra”, composta por Marinho de Oliveira em parceria com Florizel e sucesso com o cantor Bahiano em 1915. E Eduardo da Neves, não só um dos mais importantes palhaços cantores como também grande cronista musical, gravou várias canções, quase todas compostas por ele mesmo, sobre a IGG: “Maldita Seja A Guerra” (composta por Cirino),”Portugal Na Guerra”, “Itália Na Guerra” e “Fim Da Guerra”, além de um “Desabafo Carnavalesco”, sobre as dificuldades econômicas causadas pela guerra e a consequente impopularidade do então presidente, Venceslau Brás - ou, como dizia o povo, “Lalau” e “São Brás”. Eduardo das Neves, assim como Bahiano, logo voltarão a nosso campo de batalha musical.

Um detalhe que me escapou na primeira edição de meu livro sobre a grande Chiquinha Gonzaga (nem tive como evitar, com pouco espaço para resumir tão grande e copiosa obra, mas na próxima edição darei um jeito) é ela ter composto nada menos que dois espetáculos musicais sobre a IGG. A primeira, A Desfilada Dos Mortos (com versos de Paulo Silva Araújo), foi lançada em 1915 e é um poema musical trágico sobre a guerra; alguns dos temas foram tocados por uma grande orquestra na missa de trigésimo dia da morte de Chiquinha, em 1935. A segunda, Ordem E Progresso, com versos de Avelino de Andrade, estreou no primeiro dia de 1917 e é uma “revista de costumes”, mais alegre e ritmada; curiosamente, foi coberta de elogios pela imprensa (temos abaixo um exemplo, no jornal Correio da Manhã de 18/1/1917 - clique em cima da imagem para ampliá-la) mas ficou apenas 15 dias em cartaz.



A euforia cívica do que-cada-um-cumpra-com-seu-dever inspirou nada menos que duas “Canção Do Soldado”. Uma delas é uma marcha-hino composta pelo almirante Ulysses Sarmento com letra de Cícero Braga e que fez sucesso nas gravações de Bahiano (por volta de 1919) e Sylvio Caldas (em 1942). Aqui está a letra:
Pátria, nome querido que a gente
Deve ter sempre, sempre de cor;
Ou na paz ou na luta inclemente
Defendè-la é o legado melhor.
Para bem adorá-la e servi-la
Dei-lhe todo o meu bom coração;
Lá deixei minha aldeia tranqüila
E as belezas sem fim do sertão.
(Refrão)
Amo tanto e estremeço esta terra,
Quero tanto ao meu vasto país
Que se um dia partir para a guerra
Eu irei bem contente e feliz.
Para as marchas de guerra sou forte!
Tenho a luz deste eco sempre azul,
Quer alcance as montanhas do Norte
Quer devasse as coxias do Sul.
Não me abatem desgostos da vida
Pois a todos eu hei de vencer;
Pela Pátria adorada e querida,
Quero sempre lutar e morrer
Amo a paz; mas, se o orgulho estrangeiro
Mc quiser abatido e servil,
O meu corpo darei todo inteiro
Para a honra salvar do Brasil
Eli me orgulho de ser brasileiro,
De fitar este céu sempre azul,
Onde à noite se ostenta altaneiro
O famoso Cruzeiro do Sul.
Terra santa onde Osório e Caxias
Deram provas de glória e de amor
Ai, quem dera lindar os meus dias
Elevando teu nome e valor.
Para ela c por ela é que eu vivo...
Quero sempre por ela viver; ¦
Aos seus grandes conselhos cativo
Não importa lutar e morrer

(Ir à guerra “bem contente e feliz” como Chapeuzinho Vermelho vai à casa da avó? Acho que por essa nem o General Patton esperava.)

 A outra “Canção Do Soldado” deve ser campeã brasileira de obras musicais com mais títulos – e “Canção do Soldado” não foi o primeiro nem o último. Trata-se de um dobrado composto pelo paraense Teófilo de Magalhães (embora tenha havido crédito a outros autores) em homenagem  a um capitão seu conterrâneo, Caçulo De Melo. O tema foi gravado na Casa Edison com título “Capitão Caçulo” pela Banda do Batalhão Naval por volta de 1919, e ganhou letra do Segundo Sargento Alberto Augusto Martins (“nós somos da pátria a guarda...”) gravada com título “Canção Do Soldado”  por Eduardo das Neves em 1912, Quando o Brasil entrou na IGG em 1917, o governo promoveu o serviço militar como coisa das mais positivas, e para ajudar a formar tropas e elevar-lhes o moral incentivou Vicente Celestino a regravar esta “Canção Do Soldado” (acompanhado pela Banda do Batalhão Naval do Rio de Janeiro) com título mais objetivo, “Canção Militar”. Sim, o dobrado voltou a fazer sucesso, precursor de “Eu Te Amo. Meu Brasil”, obra musical não composta para o governo mas cooptada por ele. E de lá pra cá este dobrado tornou-se mais conhecido como “Canção Do Exército Brasileiro”.


Ambas as letras foram divulgadas como parte do esforço de guerra em publicações como O Jornal maranhense em sua edição de 7 de setembro - data mais patriótica, impossível - de 1917. (Clique em cima da imagem para ampliá-la)

No outro lado do disco de “Canção Militar”. Vicente Celestino gravou outra canção de incentivo à batalha campal, “Às Armas”, com autoria creditada apenas a “W. A. R.” – seria este pseudônimo realmente “Guerra” em inglês? (Curiosidade adicional: a gravação de Eduardo das Neves, feita para a Casa Edison, foi lançada com o mesmo número de série de outra gravação sua, “O Voluntário”.)


“Às Armas” e uma destas “Canções Do Soldado” foram lembradas juntamente a outras duas canções belicistas, “O Canto Do Bravo” (letra de Carlos A. Gomes Cardim e música de João Gomes Jr.) e “A Chaga Do Soldado” (sobre a qual no momento ainda me faltam mais dados) para um filme sobre a participação brasileira na IGG intitulado justamente Às Armas, lançado em janeiro de 1918. Estes temas musicais não fizeram parte da trilha do filme, que era mudo, mas a divulgação solicitou que a plateia cantasse essas canções durante o filme, conforme anúncio publicado no jornal O Estado de São Paulo em 14 de fevereiro: “Para a boa ordem e marcha do espetáculo, pede-se aos Srs. espectadores cantarem ‘Às Armas!’, ‘A Chaga do Soldado’, ‘O Canto do Bravo’, ‘A Canção do Soldado’, nos lugares marcados no filme."  Sim, em 1918 ainda não havia videogames nem Netflix, mas já havia interatividade...
(Sim,clique em cima da imagem para ampliá-la)

E, pois é, o cinema mudo também foi culpado da transformação. A influência dos EUA foi crescendo, o Brasil entrou nas eras do foxtrote, do jazz e do rock – e, no Brasil como em todo o mundo, a IGG permaneceu no imaginário popular. Em 1967 Erasmo Carlos fez sucesso com “O Ajudante Do Kaiser”, versão de Fred Jorge para “I Was Kaiser Bill’s Batman”, sucesso mundial inspirado na IGG (“Kaiser Bill” é Wilhelm II (1859/1940), último imperador da Alemanha e que abdicou justamente em 1918, e a palavra “Kaiser”, que significa “Imperador” em alemão, ganhou popularidade mundial justamente por causa da IGG). “Batman” não se refere ao justiceiro mascarado (embora a banda The Jet Black’s tenha gravado uma versão assobiada do tema com título “Eu Era o Batman”!) e sim miliciano assistente pessoal de um oficial – realmente, “Ajudante do Kaiser” é uma tradução adequada. A letra deste sucesso de Erasmo retoma o mote de "Eu Fui À Europa”, samba de Chiquinho Sales que fez muito sucesso com Linda Baptista e Maria Bethânia (confira aqui). Mas Fred Jorge parece ter feito uma ligeira confusão entre as duas guerras mundiais ao citar “aquele muro famoso”. Se o versioneiro-mor se refere ao muro de Berlim, este só foi erigido em 1961, após a IIGG - embora o Kaiser Wilhelm II tenha realmente tido um ajudante, o General Von Dommes, e este tenha declarado seu apoio a Hitler em 1940. (E, sim, Erasmo e Roberto compuseram “O Muro De Berlim”, gravada pela banda The Bells.)


E muita gente, mesmo sem saber o idioma de Goethe e Nina Hagen, já deve ser se lembrado da banda Barão Vermelho, que tirou seu nome de “der Rote Baron”, o lendário piloto alemão Barão Mandred Von Richthofen (1892/1918), famoso por seu avião triplano Fokker Vermelho e que se destacou na IGG por sua perícia não só em manobrar as três asas de seu avião, mas também as duas metralhadoras que o acompanhavam nos vôos e com que chegou a derrubar 80 aviões ingleses e franceses. É bem possível que você já tenha se lembrado também das fantasias do cachorro Snoopy combatendo o Barão Vermelho a bordo de seu avião/casinha, as quais, por sua vez, serviram de base para a carreira do grupo pop-rock estadunidense de nome britânico The Royal Guardsmen, que emplacou nas paradas com “Snoopy Versus The Red Baron” e “Return Of The Red Baron”. A primeira, de 1967, fez tanto sucesso que um cover do grupo ianque Hotshots fez ainda mais sucesso em 1973, e uma versão em português, "Soneca Contra O Barão Vermelho" (embora sem referências à IGG), foi um dos hits de Ronnie Von nos anos 1960.

Barão Vermelho é um nome de grupo de rock tão bom que nossos amigos cariocas não foram os primeiros nem os últimos, bastando lembrar o grupo pop alemão Red Baron e os hard-rockers espanhóis do Baron Rojo (e que serão lembrados no artigo irmão deste sobre a música da IGG). Por sinal, houve quem não achasse esse nome tão bom assim: o próprio Frejat. "Eu e o Cazuza ficamos meses tentando mudar o nome", contou ele à revista Bizz; “no início eu detestava, mas como não apresentamos nada melhor ficou Barão Vermelho.”

Quase todas as gravações mencionadas logo poderão ser ouvidas aqui. A bibliografia incluiu os livros Viva O Rebolado! de Salvyano Cavalcanti de Paula, Quem Foi Que Inventou O Brasil? de Franklin Martins, Filmografia Do Cinema Brasileiro 1900-1935 de Jean Claude Bernardet e Cultura Popular: Temas E Questões de José Ramos Tinhorão. E agradeço à colaboração de algumas pessoas companheiras de batalha, incluindo o pesquisador Nirez (confiram um texto dele sobre o assunto), a família Barg, Verônica Tamaoki, João Lucas e Thais Matarazzo. E vamos batalhando!

1 Comments:

At 2:24 AM, Blogger Unknown said...

Fantástico texto e muito elucidativo. Todas as facetas de um acontecimento histórico devem ser conhecidas para que possamos compreender melhor o todo. Adorei!

 

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