Tuesday, May 05, 2020

TEXTOS COM TECLA SAP: "DILMA DE OLHOS NO CHÃO" DE ALDIR BLANC




First the English version, then the Portuguese one.

My first post on this blog in the coronavirus era (I hope they will be few, not because I produce less, which doesn't happen, but because I hope this era will end soon) honours one of his casualties: lyricist and writer Aldir Blanc. Here's one of his many beautiful short stories for O Pasquim newspaper, published in issue 355, on the 16th of April, 1976, and a good-humoured attack on machismo and submission; this and other short stories by Aldir Blanc were reunited in the book Rua Dos Artistas E Arredores ("Artist Street And Thereabouts"), published in 1978. (No, this short story's Dilma has nothing to do with the famous wind-stocking politician.)

DILMA WITH HER EYES ON THE FLOOR
Aldir Blanc
English translation by Ayrton Mugnaini Jr.

Fragoso had the cinema-like security of falsely virtuous people. His exaggerated concern for elegance led him to iron his linen suit so much that he couldn't even walk straight. His friend Penteado, a tremendous joker, was always merciless:

- Jacket even harder than the proverbial wooden suit!

But Fragoso pretended he didn't hear any of that. He fixed an imaginary fault in his tie knot and showed an affected giggle, just off the left corner of his mouth.

Very unsympathetic, often provoked unfavourable comments:

- His little mouth is worthy of a hard punch!

- Well dressed... Perfumed... I don't know... For me, this guy is a pansy of sorts.

Not so. Fragoso was no sissy. Stuck-up, arrogant, that's what he was. That type of guy who thinks he is the BIGGEST, and works for a BIGGER house, a BIGGER car, a BIGGER vacation, and ends his life in an infirmary, arguing with his bedside neighbour about which one has the BIGGEST tumour.

Dilma, on the other hand, was simplicity incarnated: she worked all day, a scarf on her head, shabby slippers. Fragoso, rascal that he was, justified thus:

- What do I need a housemaid for? Dilma loves housekeeping. She finds it fun. Right, my angel?

Dilma agreed, with her eyes on the floor.

The other Artist Street dwellers commented that Dilma's sadness was due to Fragoso's lack of respect. Always very full of himself, he came home late, his voice sweetened by passion-fruit-laced beverage, a rose of lipstick on his lapel. Dilma, her eyes on the floor, asked quietly:

- Want dinner?

She was humiliated.

- I’ve had dinner already.

And he shouted from the bathroom:

- A man like me has to have dinner out every now and then.

Dilma, with her eyes on the floor, listened to the strong spurt of urine and felt very helpless.

If she went to the fortune teller, she heard, sure enough:

- I see a brunette woman.

The following week, he returned, a thread of hope crumpled within the lace scarf:

- I see a blonde woman.

As soon as she came back home, he saw the letter on the floor.

When she answered the phone, disguised voices whispered:

- Your husband has another woman at the Engenho Novo district.

- Here is a friend who doesn't want to see you playing this role.

Neighbours gave advice:

- Put on a decent attire! Treat yourself right, woman!

- Stop being a fool! Get yourself another man too!

Dilma, with her eyes on the floor, felt a frightening certainty increase: no one understood anything at all.

Once, out of curiosity rather than hope, she went to a spiritualist centre at the Pereira Nunes district where Heronda was acting as a medium. As soon as she entered, a pomba-gira spirit whistled and, Heronda, shouting, pointed her crooked finger to Dilma:

- Thorn apple! Your cakes shall always rise!

She wrote to the Ladies' Yearbook asking for help. Famous columnist Colette replied in an unforgettable way:

"Consummation by fire is not destruction but transformation. Trust and wait."

In gratitude, Dilma revealed to the Yearbook her secret recipe for orange spongy cake. A most fêted delicacy, not even my grandmother Noemia dared to compete with Dilma. So much so that, on that Easter Sunday, Dilma came to the monumental meeting with her spongy cake:

- It's for the kids.

- You shouldn't have bothered, dear.

Everyone noticed Fragoso's absence, but nobody said a thing. Dilma herself, with her eyes on the floor, explained quietly.

- He went to see a sick uncle at Belford Roxo.

About five o’clock in the afternoon, everyone was in the yard talking about guava, football, everything, the most lively chat, when Fragoso appeared. He was undoubtedly drunk, stiff in his starched linen suit, with that meticulous gestures of someone very inebriated. He didn’t even address his wife. Soon he was filling a glass of beer without foam, while saying:

- Today they told me a good joke... Do you keep the one about the parrot that hid in the toilet? Ha, ha... There was a parrot that was crossed with his owner because she always left him out in the cold. Then he... AAATCHOOOO!

Still laughing at the effect he thought the joke would have, Fragoso, rather wobbly, reached into his jacket pocket, took out a woman's panties and blew his nose vigorously on the delicate underwear. There was a silence that rang in the ears. Fragoso, when he realised his blunder, he laughed and, with the greatest cynicism, said to Dilma:

- Do you know what happened, my angel?... I couldn't find a handkerchief when I left home and, so as not to wake you up, I took the first thing that...

The beer bottle hit the left corner of the mouth, right on that giggle, and there were shards of teeth, blood and broken glass everywhere.

Later, Dilma, with her eyes on the floor, spoke quietly as always to my grandmother:

- What I put up with no one else would put up with... You know... But to say that I don't do my job was way too much. The wardrobe’s drawer is always full of clean and ironed handkerchiefs. You can go and see for yourself.

***

Agora em português:

Minha primeira publicação neste blogue na era do coronavírus (espero que sejam poucas, não por eu produzir menos, o que não ocorre, mas sim porque espero que esta era termine logo) homenageia uma de suas vítimas fatais: o letrista e escritor Aldir Blanc. Aqui vai uma das muitas e belas de suas crônicas para o jornal O Pasquim, publicada na edição 355, de 16 de abril de 1976, e uma bem-humorada critica ao machismo e à submissão; esta e outras crônicas de Aldir Blanc foram reunidas na coletânea Rua Dos Artistas E Arredores, publicada em 1978. (Não, a Dilma desta crônica nada tem a ver com a famosa política estocadora de vento.)



DILMA DE OLHOS NO CHÃO
Aldir Blanc

Fragoso tinha a cinematográfica segurança das pessoas falsamente virtuosas. Sua exagerada preocupação com a elegância levava-o a engomar tanto o terno de linho que nem dava pra andar direito. Penteado, tremendo gozador, não perdoava:

- Paletó mais duro que esse só o de madeira!

Mas o Fragoso não se dava por achado. Ajeitava um imaginário defeito no nó da gravata e exibia um risinho afetado, só no canto esquerdo da boca.

Bastante antipático, não raro provocava comentários desfavoráveis:

- Ô boquinha boa pra sentar um murro!

- Arrumadinho. . . Perfumado... Sei não... Pra mim, esse cara é chegado a um quibe cru.

Exagero. Fragoso não tinha nada de boneca. Era metido a besta, isso sim. Desse tipo de cara que se acha o MAIOR, e trabalha por uma casa MAIOR, um carro MAIOR, um período de férias MAIOR, e termina a vida numa enfermaria, discutindo com o vizinho de leito quem é que tem o câncer MAIOR.

Já a Dilma era uma simplicidade: trabalhava o dia todo, pano na cabeça, chinelinho surrado. O calhorda do Fragoso justificava:

- Empregada pra quê? Dilma adora o serviço de casa. Pra ela é diversão. Né, meu anjo?

Dilma concordava, de olhos no chão.

As comadres da Rua dos Artistas comentavam que a tristeza da Dilma era pela falta de respeito do Fragoso. Prosa como ele só, chegava em casa tarde, a voz adocicada pelas batidas de maracujá, uma rosa de batom na lapela. Dilma, de olhos no chão, perguntava baixinho:

- Quer jantar?

Era humilhada.

- Já comi.

E gritava do banheiro:

- Um homem como eu tem que comer fora de vez em quando.

Dilma, de olhos no chão, escutava o jorro forte da urina e sentia um grande desamparo.
Se ia na cartomante, era batata:

- Vejo uma mulher morena.

Na semana seguinte, voltava, um fio de esperança amassado no lencinho de renda:

- Vejo uma mulher loura.

Mal entrava em casa, via a carta no chão.

Se atendia o telefone, vozes disfarçadas sussurravam:

- Teu marido tem outra no Engenho Novo.

- Aqui é uma amiga que não quer te ver fazendo esse papel.

Vizinhas davam conselhos:

- Bota uma roupa decente! Te trata, mulher!

- Deixa de ser boba! Arranja um você também!

Dilma, de olhos no chão, sentia aumentar uma certeza assustadora: ninguém compreendia nada de nada.

Uma vez, mais por curiosidade do que por esperança, foi a um centro na Pereira Nunes onde a Heronda se desenvolvia. Assim que entrou, uma pomba-gira deu de assobiar, e, gritando, apontava em sua direção o dedo torto:

- Figueira do diabo! Tu nunca vai fazer bolo solado!

Escreveu para o Anuário das Senhoras pedindo auxílio. A famosa Colette respondeu de forma inesquecível:

"A consumação pelo fogo não representa destruição e sim transformação. Confie e espere".

Em agradecimento, Dilma revelou ao Anuário sua receita secreta de pão-de-ló de laranja. Doce festejadíssimo, nem mesmo minha avó Noêmia se atrevia a competir com a Dilma. Tanto assim que, naquele domingo de Páscoa, Dilma veio para o monumental cozido munida do seu pão-de-ló:

- É pras crianças.

- Não precisava se incomodar, querida.

Todo mundo reparou na ausência do Fragoso, mas ninguém disse bulhufas. A própria Dilma, de olhos no chão, explicou baixinho.

- Foi ver um tio doente em Belford Roxo.

Lá pelas cinco da tarde, tava todo mundo no quintal falando de goiaba, futebol, o maior papo, quando surgiu o Fragoso. Vinha indiscutivelmente bêbado, duro dentro do terno de linho engomado, com aquela meticulosidade de gestos de quem tá com a cisterna cheia. Nem se dirigiu à esposa. Foi logo enchendo cuidadosamente um copo de cerveja sem espuma, enquanto dizia:

- Hoje me contaram uma boa. . . Cês manjam a do papagaio que se escondeu na privada? He, he... Tinha um papagaio que tava por conta com a dona que deixava ele no sereno. Aí, ele fez o seguinte... AAATCHIMMMMM!

Ainda rindo do efeito que a piada causaria, Fragoso, meio bambo, meteu a mão no bolso do paletó, tirou de lá uma calcinha de mulher e assoou vigorosamente o nariz na delicada peça íntima. Fez-se um silêncio que chegava a zunir nos ouvidos. Fragoso, quando viu a mancada, armou seu risinho afetado e, com o maior cinismo, disse pra Dilma:

- Sabe o que foi, meu anjo?... Não achei lenço na hora de sair e, pra não te acordar, peguei a primeira coisa que...

A garrafa de cerveja acertou bem no cantinho esquerdo da boca, bem no risinho e foi pedaço de dente, sangue e caco de vidro pra todo lado.

Mais tarde, Dilma, de olhos no chão, falava baixinho como sempre pra minha vó:

- O que eu aturei ninguém aturava... A senhora sabe... Mas dizer que eu não faço o meu trabalho, isso não. A gaveta do camiseiro tá cheia de lenço limpo passado a ferro. A senhora pode ir lá ver.

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