DISNEY E A MUSICA BRASILEIRA - BRANCA DE NEVE E AS MIL VERSÕES
Este breve, modesto e nada maçante estudo sobre a presença no Brasil da versão Disney da história de Branca de Neve é uma pequena amostra de um trabalho em andamento sobre uma de minhas novas obsessões: a relação entre a Disney e a música brasileira, tema que já rendeu dois belos programas na Rádio Matraca em 2018.
"Jamais será criada outra obra igual a esta!" Hipérboles à parte, este desenho não perdeu nem um dia de seu fascínio desde a estreia até hoje. Walt Disney sabia muito bem que produto
comercial não é sinônimo de coisa apelativa ou mal feita; pelo contrário,
quanto mais bem feito, mais público terá. A Disney nem ligou para quem resumiu
o trabalho de três anos e a despesa de um milhão e meio de dólares (um bom
dinheiro ainda hoje, no fim dos anos 2010, imaginem nos anos 1930) em BDNEO7A (como doravante abreviaremos, excepto em citações textuais) como “loucura”; só a primeira temporada mundial do filme rendeu oito milhões de
dólares, e hoje ele é uma das maiores bilheterias de todos os tempos nos EUA. E
o perfeccionismo e a visão larga de Walt Disney criaram ainda mais um
precedente, conforme ele mesmo anunciou logo após a estreia (e sucesso inicial)
de BDNEO7A nos EUA e Inglaterra: “Branca De Neve E Os Sete Anões será
apresentado, em cada país, no idioma nacional. E, possivelmente, esses mesmos
países se encarregarão de encontrar vozes que se adaptem aos caracteres por nós
criados, isto naturalmente sob a orientação de um meu agente. Estou certo de
que assim o sucesso de Branca De Neve será muito maior, sendo um filme para
pessoas adultas e crianças, estas últimas compreenderão facilmente a história,
pelo seu diálogo.” Sem patriotada, este “possivelmente” era moleza em se
tratando de Brasil: ainda em 1938 o compositor e produtor João de Barro, o
Braguinha, dirigiu a dublagem brasileira de BDNEO7A incluindo
vozes de grandes astros da MPB como Dalva de Oliveira (Branca de Neve
cantando), Maria Clara Jácome (Branca de Neve falando), Carlos Galhardo
(Príncipe), Túlio Lemos (caçador), Cordélia Ferreira (Rainha), Estephania Louro
(Bruxa), o grande cantor e pesquisador musical Almirante (em dois papéis, Espelho
Mágico e o anão Mestre), Delorges Caminha (Feliz), Aristóteles Penna (Zangado),
Edmundo Maia (Atchim) e o humorista Baptista Jr. (vozes de dois anões, Soneca e
Dengoso). O excelente resultado foi tão elogiado por Walt Disney em pessoa que
ele não demorou a visitar com frequência o Brasil e produzir filmes e desenhos (Saludos, Amigos!/Alô, Amigos!,
1940; Aquarela do Brasil, 1942; Por Terras Da América, 1943; The Three
Caballeros/Você Já Foi À Bahia?, 1944, e outros) com temática brasileira – e com
direito a criação de um personagem bem brasileiro, o emérito sambista e malandrinho Zé Carioca.
BDNEO7A foi o primeiro
filme a ter disco de sua trilha sonora, um álbum de três discos 78 RPM, lançado pela RCA estadunidense. Pois bem, ainda em 1937/8 saíram no
Brasil discos com gravações da trilha sonora original cantada em inglês, embora
os personagens constem nos selos com seus nomes em português; mas não demorou
muito para a versão brasileira chegar ao disco. João de Barro, autor e
coordenador da adaptação brasileira, era diretor da gravadora Continental, e em
1945 coube a ela a honra e prazer de lançar uma versão resumida desta
adaptação, num álbum duplo de dois discos 78 RPM de doze polegadas – primeiro
disco brasileiro, infanto-juvenil ou não, com capa especial, não capa genérica
de gravadora ou loja nem simplesmente em branco.
Braguinha conseguiu reunir
quase todo o mesmo elenco da dublagem do filme: além de Dalva de Oliveira,
Carlos Galhardo e Almirante, ouve-se Arnaldo Amaral (caçador), Sarah Nobre
(Rainha), Antônio Nobre, Brandão Filho, Duarte de Morais e Abelardo Santos
(anões) e narração de Olga Nobre. Um participante deste disco brasílico de
Branca De Neve não foi creditado mas iria em breve se tornar ilustre – e
provavelmente grande pioneiro. Trata-se do cantor Pery Ribeiro (1937/2012),
filho de Dalva de Oliveira, e que fez a voz do anão Dengoso. O estúdio não
tinha ar condicionado e o calor foi demais para o pequeno Pery, que acabou
imitando o indígena que lhe deu o nome: “Fui ficando agoniado com o calor; aos
poucos fui pedindo para tirar a roupa. Tira uma peça, tira outra... acabei
cantando completamente nu, sob os olhares invejosos dos adultos presentes no
estúdio.” Isso mesmo, a cantora baiana Simone não foi a primeira pessoa no
Brasil a gravar discos como veio ao mundo no estúdio. (E, ao contrário do que
pensa muita gente boa, Pery não cantou na primeira dublagem do filme, pois
ainda não tinha idade para tanto.)
Seguiram-se outros discos de 78 RPM produzidos
por João de Barro com trilhas brasileiras da Disney, numa coleção chamada
Discos Infantis Continental, que foi a origem da famosa coleção Disquinho,
lançada em 1960 e famosa por seus vinis coloridos. E quase todas as gravações
dos anos 1940 ficaram tão boas que são as mesmas que se ouve em alguns volumes
da coleção Disquinho, inclusive relançadas em CD nos anos 1990 (na coleção Era
Uma Vez... da gravadora Warner, que havia adquirido a Continental) e 2000 (a
série Disquinho promovida a CDs com as capas originais dos compactos).
“Someday My Prince Will Come”, composta por Larry Morey e Frank Churchill, tornou-se um
clássico da canção pop e virou até standard de jazz, interpretado por feras
como Miles Davis e Bill Evans. Uma curiosidade é que na primeira versão em
disco da dublagem brasileira, de 1945, esta canção aparece apenas como música
incidental instrumental e num trecho cantado à capela por Dalva de Oliveira,
que fazia o papel de Branca de Neve. Teria sido por alguma questão de direito
autoral? E em 1954 a versão Disney de BDNEO7A ganhou nova interpretação
brasileira, em outra gravadora, a RCA Victor, e com outro elenco, trazendo
Branca de Neve interpretada por nada menos de duas pessoas: a cantora Heleninha
Costa (1924/2005) e a atriz Daise Lucidi (1929/2020). Nesta nova gravação a canção “Someday My Prince
Will Come” aparece na íntegra. (Esta versão foi lançada num
álbum duplo de discos 78 RPM de doze polegadas, promovida a LP em 1957, junto à
adaptação disneyana de Peter Pan.)
Edição original do LP de 1957 e uma reedição de c. 1970.
Sim, a primeira capa deste LP de nossa RCA reproduz a capa da primeira edição estadunidense em compactos, de 1949.
Este disco brasileiro de BDNEO7A da RCA (junto a outra adaptação da Disney, Peter Pan) mereceu belos anúncios como este na tão saudosa quanto indispensável Revista do Long-Playing.
Idem a estreia da pioneira gravação da Continental em compacto, no caso um álbum duplo de compactos (sim, à la Magical Mystery Tour, ou vice-versa) em 45 RPM, na edição de novembro-dezembro de 1959.
Em meados de 1960 foi a vez de esta gravação da Continental virar LP.
Por falar em Dalva, Daise e Heleninha, em
termos de versões brasileiras deste clássico disneyano em discos já temos quase
mais Brancas De Neves que anões, com pelo menos quatro adaptações lançadas em
diversos formatos (78 RPM, LP, compacto, fita cassete e CD): a da gravadora
Continental (1945, reeditada inclusive em compacto da série Disquinho em 1959 e LP da série Discão em 1965, e que pode ser ouvida aqui), RCA (1957; podes ouvi-la aqui), a dos compactos com fascículos da editora Abril
(1970, aqui) e uma comemorativa dos 50 anos do filme (1987, esta está aqui). Os repertórios de
canções diferem para cada versão, a única constante em todas sendo “Eu Vou”
(sim, “pra casa agora eu vou” ou, conforme a gravação, “eu vou, eu vou” - canção tão marcante que até inspirou parte da melodia de um jingle igualmente marcante, "Dezembro Vem O Natal" das Pernambucanas; compare "que em todos os lares a paz seja total" com "eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou"... Se bem que ambas se parecem com a canção natalina muito mais antiga "We Wish You A Merry Christmas"...).
Em 1970 foi feita nova adaptação para a coleção de discos-e-fasciculos Estorinhas De Walt Disney da Editora Abril, incluindo participação não creditada do grupo vocal MPB-4.
Em 1944 o desenho BDNEO7A foi mundialmente relançado ("com novos coloridos, não é uma reprise, mas uma reedição", conforme anunciado na época em publicações como Cine-Revista), mas a trilha sonora permaneceu a mesma; 21 anos depois, Disney pediu nova dublagem, e no Brasil ela incluiu jovens talentos como o Cybele, do grupo vocal Quarteto em Cy, com novas versões para as letras pelo velho amigo Aloysio de Oliveira. Esta dublagem de 1965 é a que se ouve nos relançamentos em cinemas, VHS e DVDs; a dublagem original de 1938, infelizmente, perdeu-se, com as copias originais gastas pelo uso e as matrizes desaparecidas, pelo menos até o momento destas linhas.
Há outra ilustre versão brasileira do conto de Branca de Neve, gravada nos anos 1950 no selo Carroussell (a princípio num álbum duplo de compactos em 78 RPM) com texto de Geny Marcondes, narração de Henrique Lobo e música do grande Claudio Santoro, porém relançada mais recentemente com capas inspiradas na versão Disney do conto.
Sem falar nas versões toscas que procuram imitar a Disney de forma ainda mais tosca, tais como as duas abaixo. Pois é, quem quer ganhar a vida sem vender maçãs envenenadas com ou sem agrotóxicos se vira como pode...
Clássico instantâneo do cinema, a versão Disney
do conto de Branca de Neve tornou-se a mais popular de todas e marcou presença
também instantânea no imaginário popular. Já lembramos de John Lennon, nascido
três anos depois da estreia do filme, usando a frase “do you want to know a
secret?/promise not to tell?” em uma das primeiras canções dos Beatles, para
citarmos apenas um exemplo internacional. No Brasil não foi diferente, só para
ficarmos na música e na malícia, com ou sem maldade, tipicamente brasileiras.
Dalva de Oliveira, primeira voz brasileira de Branca de Neve e que logo se tornaria integrante do grupo vocal Trio de Ouro ao lado de seu marido, o cantor e
compositor Herivelto Martins (pai do citado Pery Ribeiro e cuja dupla vocal Preto e Branco logo se formaria o Trio de Ouro ao incluir Dalva), não demorou a
aproveitar o brasileiríssimo Carnaval com uma marchinha objetivamente
intitulada “Branca de Neve”, de Herivelto em parceria com Benedicto Lacerda e
lançada em 1939:
(falado)
- Quem é você?
- Eu sou a Branca de Neve, e você (ri), você é
o Dengoso!
- Ah, deixa!
(cantado)
Oh, minha Branca de Neve
Eu hei de ser o teu anão, anão, anão
E se tu fores da mesma opinião
Te darei um castelo
Dentro do meu coração
E mais tarde, princesinha,
Pra evitar complicações
Eu pedirei a uma cegonha
Que me venha trazendo os sete anões
Consta (ainda não localizei gravação nem mais informações) que no mesmo ano de 1939 Benedicto Lacerda
compôs ainda outra canção sobre o tema, a mais maliciosa “Os Sete Anões”,
parceria com o jornalista Angelo Delatre, co-autor de clássicos da musica
brasileira como “Na Aldeia” e “Tudo Em P”:
O que você diz não se escreve
Porque traz complicações
Você não é Branca de Neve
E quer mais de sete anões!
Décadas passam e Branca de Neve continua
inspirando gravações nem sempre inocentes. Um exemplo é “Branca De Neve”, lançada em
2013 pela dupla brasiliense de rap Tribo da Periferia. Confiram trechos da letra:
Era uma vez Branca de Neve
linda como sempre
Na frente do papai finge
que é inocente
(...)
Espelho, espelho meu,
entre erros e acertos
Entenda essa situação pra
sentir os efeitos
Aqui, conto de fadas, não
existe a maçã
Hoje tem pó dos loucos
pra virar até de manhã
A princesa escolheu
esquecer do seu passado
Trocou sua coroa por Taurus
reforçado
(...)
Enquanto os anãozinhos
estão vindo com maldade
Que o bagulho trinca de
rolê pela cidade
(...)
Faz a cabeça pra fugir da
realidade
Coração vingativo e cheio
de maldade
Sete desejos que ela se fascina
Sete lombras curtidas
somado com cocaína
Sete no pente para
garantir a proteção
Se vacilar é só mais sete
dentro do caixão
Menos
pesada e igualmente maliciosa é “Parará Tibum”, de 2015, onde a cantora Tati
Zaqui (nasc. 1994) mistura um tema da versão Disney de Branca de Neve com uma
antiga marchinha carnavalesca (“Parará-Tchim-Bum”, composição de Edaor e
Castrinho, lançada pelo palhaço Chicharrão e grande sucesso no Carnaval de
1962) que virou comercial de achocolatado. Zaqui
sentiu necessidade de parodiar uma canção a mais conhecida possível para chamar
atenção e fazer sucesso; a premiada foi a marcha dos Sete Anões, e Zaqui não
teve duvida em alterar “pra casa agora eu vou” para “sentar agora eu vou”. No
fim a canção foi proibida, e não por censura à intenção "risqué", mas por Zaqui ter
utilizado o tema da Disney sem ter pedido autorização à editora...
(Vale consultar também o belo blogue brasileiro A Memoria da Dublagem, cujo titulo direto e objetivo não precisa ser dublado, e o estrangeiro Filmic Light, total e dedicadamente especializado em tudo que se refira a Branca de Neve, da Disney ou não.)
2 Comments:
Parabéns Ayrton! Eexcelente trabalho!
Excelente artigo, mas precisa de algumas correções nas informações sobre os discos.
A gravação do 78 RPM de 1945 não é a que aparece nos compactos Disquinho. Para estes foi feita outra em 1960, com o mesmo roteiro e outro elenco. Os nomes dos artistas da dessa segunda versão eu nunca encontrei. Mas é essa segunda que se ouve no áudio aqui apresentado, e não a de 1945.
Quanto ao LP de 1987, o que ele contém são trechos da dublagem de 1965 do filme, e não uma nova versão da história gravada gravada em 1987 como dito aqui.
E tenho mais uma curiosidade praticamente inédita:
Existem duas gravações quase iguais da história feitas em 1945 com Dalva e Galhardo. Não sei porque gravaram duas vezes, mas as duas sairam em 78 RPM na época, aposto que com o mesmo selo, e sem nunca terem divulgado que os discos não tinham todos a mesma gravação. Só quem era esperto percebeu. Eu tenho as duas em MP3.
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