Monday, April 22, 2019
Esta é uma "remixagem" revista e atualizada de um texto meu publicado originalmente na venerável revista virtual Senhor F.
AO
VIVO ATÉ NO PALCO: OS FALSOS DISCOS AO VIVO DO ROCK
Ayrton
Mugnaini Jr.
(Dedicada
a Adolfo Budokan, lendário nissei freqüentador de sebos paulistanos dos anos
1980 que só ouvia discos ao vivo).
Em
arte, parecer é mais importante que ser. Mas tem gente que exagera... E “nem
tudo que parece algo é algo.” Uma prática que de tão errada e criminosa acaba
sendo certa e até louvável, defeito transformado em estilo, picaretagem que
virou tradição, são os famosos discos que fingem ser ao vivo, gravações de
estúdio com efeitos de platéia (aplausos, gritos histéricos, vaias, pessoas apresentadoras)
sobrepostos com maior ou menor habilidade – ou mesmo gravações legitimamente ao
vivo, porém maquiadas com novos vocais ou instrumentos.
Não
estamos falando dos casos em que a intenção é apenas sugerir uma atuação ao
vivo, como é o caso de faixas como "Sgt. Pepper's" dos Beatles, “So
You Wanna Be A Rock And Roll Star” dos Byrds ou "Tu És O MDC Da Minha
Vida" de Raul Seixas. Também não são de nossa alçada os retoques
honestamente admitidos, como alguns vocais de fundo no disco David Live de
David Bowie, refeitos devido a falhas nos microfones, nem os milhares de discos
meio-ao-vivo-meio-em-estúdio de Frank Zappa desde o fim dos anos 1970. É
verdade que alguns artistas fazem questão de serem honestos até demais, como o
Ten Years After (seu duplo ao vivo Recorded Live traz o aviso "sem
'overdub' ou aditivo algum") e Rod Stewart (na capa de Absolutely Live há
pelo menos dois pedidos de desculpas pelos erros do saxofonista na faixa
"Tear It Up"). O que aqui nos interessa são aquelas armações que, em
casos extremos, dão vontade de chamar não só o Procon, mas também a Secretaria
de Saúde Pública.
O
VELHO ENGENHO IANQUE
Talvez
o precursor dos falsos-ao-vivo no rock - certamente um dos mais famosos - seja
Chuck Berry On Stage, lançado em setembro de 1963 para aproveitar o sumiço de
Tio Chuck, em meio a sua primeira imerecida temporada na prisão. O disco é uma
obra-prima de oportunismo, reunindo as versões originais de Berry para músicas
suas que vinham fazendo sucesso com outros intérpretes como
"Memphis", "Sweet Little Sixteen" (transformada pelos Beach
Boys em "Surfin' USA"), mas recobertas com aplausos fajutos e o toque
final de um mestre de cerimônias anunciando "Chuck Berry, o autor de
'Surfin' USA!" Vale lembrar que este foi o primeiro LP de Chuck a alcançar
as paradas. Pois é, dê às pessoas o que elas querem...
Os
próprios Beach Boys se demonstraram mestres na arte de discos supostamente ao
vivo. Beach Boys Concert, de dezembro de 1964, pode até ser realmente ao vivo,
mas certamente inclui a versão de estúdio de "Fun Fun Fun", recoberta
com aplausos. Ninguém reclamou, muito pelo contrário: este LP tornou-se não só
o primeiro dos Beach Boys a chegar ao topo da Billboard, mas também o primeiro
disco ao vivo a conseguir tal feito nos EUA. O grupo repetiu a dose de forma
mais sutil em Beach Boys Party, que realmente parece ao vivo numa festinha -
Brian Wilson se deu ao trabalho de gravar e mixar estrategicamente ruídos de
pessoas conversando e enchendo copos de refrigerante.
O
primeiro LP dos Kingsmen também foi ao vivo mas nem tanto: Louie Louie - The
Kingsmen In Person (lançado em março de 1964) foi realmente gravado perante uma
plateia, exceto a faixa-título, nada menos que o hit original - inclusive com o
primeiro vocalista, que até havia deixado o grupo em circunstâncias nada
amigáveis!
Impact!,
dos Kenny & The Kasuals, é o tipo da picaretagem bem-feita. Cheap Thrills
do Big Brother & The Holding Company (bem mais famoso hoje em dia como o
grupo de Janis Joplin) inclui algumas faixas supostamente ao vivo, mas na
verdade gravadas em estúdio com aplausos (muito bem) sobrepostos. E o que dizer
do LP Live At Dave's Hideout, dos Fugitives (semente do grupo SRC de fins dos
anos 1960)? A banda gravou algumas faixas em estúdio, foi à casa noturna
detroitiana do título (a Hideout), colocou a fita no P. A. da casa para os
frequentadores ouvirem e gritarem como se fosse um show, gravou tudo e lançou o
resultado como disco ao vivo...
O
disco Eagles Live (1980) chegou a ganhar da publicação Rolling Stone o título
não muito cobiçado ou invejado de "disco ao vivo mais mexido de toda a
história do rock". As
Shangri-Las e o cantor folk Phil Ochs são outros grandes nomes que lançaram
discos não muito ao vivo - sobre estes últimos, um fã chegou a afirmar que falsos-ao-vivo
eram praticamente obrigatórios nos anos 1960. E a soul music, parente próximo e
querido do rock, também tem seus “fake live albums”, como Yeah!!! de Aretha
Franklin, Showtime de James Brown e Live do grupo vocal O’Jays.
AO
VIVO PRA INGLÊS OUVIR
É claro que não esqueceremos dos Rolling Stones, os verdadeiros Irmãos Cara-De-Pau, e seus notórios LPs Got Live If You Want It! (1966) e Get Yer Ya-Ya's Out! (1970). O primeiro inclui sobras de estúdio como "I've Been Loving You Too Long" e até faixas já lançadas em disco oficial como "Fortune Teller". O segundo foi totalmente mexido no estúdio, com novos e mais certinhos vocais e guitarras; basta compará-lo com Liver Than You'll Ever Be, versão pirata lançada um ano antes e realmente ao vivo, inclusive com algumas faixas bem mais longas. Love You Live, o disco ao vivo seguinte dos Stones, é indicado somente para pessoas que, mais que fãs, sejam viciadas necessitando ter absolutamente todo e qualquer disco de um artista: é um dos primeiros álbuns duplos ao vivo burocráticos, mero produto para ganhar tempo e dinheiro entre (ou até em vez de) discos de estúdio. É consenso que de Love You Live só se salva o terceiro dos quatro lados, gravado na pequena boate canadense El Mocambo – embora a gaita em “Mannish Boy” tenha sido claramente sobreposta no estúdio em trechos nos quais Mick Jagger jamais conseguiria tocar e cantar ao mesmo tempo...
Um caso à parte é Live At The Kelvin Hall, primeiro disco ao vivo dos Kinks. De
fato, boa parte do disco é ao vivo, mas pelo menos alguns trechos foram
bastante reelaborados em estúdio - basta dizer que as mixagens mono e estéreo
trazem diferentes solos de guitarra nas mesmas faixas! Para completar, nem a
capa é ao vivo: todas aquelas fotos foram feitas em estúdio...
Mas
se os Stones e os Kinks conseguem fingir muito bem que tocam ao vivo, de outros
é o caso de perguntar para quê se dar ao trabalho de fazer algo mal feito. Veja
o grupo inglês John's Children, cujo lendário LP Orgasm consiste em gravações
de estúdio recobertas com, veja só, os gritos das beatlemaníacas do filme A
Hard Day's Night. E não é à toa que Jimmy Page mandou sumir das lojas o disco
Yardbirds Live, que, além de mostrar o grupo no pior de sua forma, inclui,
escute só, gritos da platéia não de um show de rock, mas de uma tourada! Pois
é, se você precisar fazer algo errado, pelo menos faça certo.
Um
pouco mais esforçada foi a banda The Sweet. Em algumas faixas ao vivo de seu
álbum Strung Up a caixa da bateria foi refeita em estúdio. Motivo: o show (no
Rainbow Theatre de Londres em 1973) foi gravado em 16 canais, além de uma
versão em mono diretamente da mesa; só que esqueceram de microfonar a caixa da
bateria, a qual precisou ser refeita nas faixas que a banda resolveu incluir no
citado Strung Up... A citada mixagem em mono está completa, embora em mono e
ligeiramente distorcida, e foi lançada integralmente no álbum Live At The
Rainbow 1973.
(E o álbum “fake live” dos Eagles tem um
concorrente perigoso até no nome: Live And Dangerous da banda Thin Lizzy, no
qual, segundo o produtor Tony Visconti, até alguns ruídos da plateia foram
inseridos em estúdio...)
UM
FESTIVAL DE FALSIFICAÇÕES
O
mítico LP triplo ao vivo do festival de Woodstock de 1969 tem menos do que pode
parecer de gravações autênticas do evento. O encarte de uma edição oficial em CD
deste álbum admite que sons de grilos e trovões foram incluídos artificialmente
e que muitas gravações de artistas como John Sebastian e a Grande Família Crosby
são ao vivo de outros locais ou mesmo de estúdio. Quanto ao LP duplo, Woodstock
2, a resenha do crítico Robert Christgau já dá uma pista: “Não entendo porquê,
mas [Paul] Butterfield, [Joan] Baez e especialmente CSNY soam com mais coesão
que da última vez.”
SE
LÁ FORA É ASSIM, IMAGINA AQUI
E
no Brasil? Pergunte à gravadora PolyGram, notória especialista em "ao
vivo" com dez aspas; o mais famoso é Hollywood Rock, reunindo gravações de
estúdio com aplausos (mal) sobrepostos. Quando for perguntar, lembre-se de que
a PolyGram é a mesma Universal de hoje, que tanto reclama da pirataria - ou
seja, da pouca honestidade alheia. Pois é, veja o que acontece quando se dá às
pessoas o que se quer que elas queiram...
E
não direi o nome da banda que lançou um disco ao vivo e da qual um integrante
me contou ter sido o único que não precisou refazer sua parte em estúdio... (Mas direi que meu disco de 2019 vai ter uma faixa sobre este tema de falsos discos ao vivo, intitulada "Eu Sei Que Eu Vou Estar Lá", aguardem!)
1 Comments:
Prezado Ayrton, mais alguns exemplos de picaretagem: os discos ao vivo do Kiss, principalmente o ALIVE I, o UNLEASHED IN THE EAST (Judas Priest) e o WORLD WIDE LIVE (Scorpions).
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