Tuesday, November 11, 2025

DIÁLOGOS ENTRE ADONIRAN BARBOSA E RAY DAVIES


Quem me conhece sabe ou acaba sabendo que duas de minhas maiores influências são os compositores Adoniran Barbosa (1910/1982) e Ray Davies (1944, famoso como líder da banda The Kinks), referências em suas respectivas áreas, respectivamente samba e rock inglês, e ambos mestres da crônica musical com ironia, humor e melodias simples mas eficientes. Nos anos 1980 comecei a publicar textos sobre eles, três pontos altos sendo os livros Adoniran: Dá Licença De Contar..., publicado pela Editora 34 em 2002 e já na segunda edição; Adoniran Em Partitura, parceria com Tomás Bastian (Associação Cultural Cachuera, 2017); e o livro coisa-de-fã-empreendedor The Kinks – A Komplete And Koncise Kollektion Of Kognizance, Kuriosities, Katalogs And Komentaries, trabalho épico de xerox, goma arábica e datilografia com fita de pano lançado em 1980 e do qual há uns cento e poucos exemplares por aí (um livro-"fanzinão" que, acho, merece nota sete e meio pela iniciativa e esforço).

 


À medida que fui avançando como compositor e pesquisador, acabei descobrindo que as obras de Adoniran e Ray têm muito mais em comum além do mencionado acima. Ou, como se diz hoje em dia, ambos “conversam” ou “dialogam” um com o outro, e merecem um paralelo semelhante ao que fiz entre Jim Morrison e Cazuza no meu livro sobre este último.

Para começar, entre o “Poeta do Bixiga” e o “Patriarca do Britpop” há coincidências pessoais que, se não importantes, são pelo menos interessantes. Ambos são altos e magros e filhos caçulas, ou quase (Ray é o penúltimo), de famílias numerosas; gostam de futebol, como atesta Adoniran em “Coríntia” (parceria com Juvenal Fernandes, 1969), “Coríntia, Coríntia, meu amor é o Timão”, e Ray canta “Gosto de meu futebol aos sábados” em “Autumn Almanac, de 1967). Ambos não tiveram filhos, mas Adoniran teve uma filha e Ray quatro. O jeito irônico de ambos é do tipo adoravelmente rabugento. Ambos cantam sobre os problemas da vida suburbana de grandes cidades e conseguem grande inspiração no trivial. E ambos se orgulham das cidades que ajudaram a celebrizar e transformar em música.

“Waterloo Sunset” (1967), grande sucesso dos Kinks (sendo Waterloo uma estação do metrô londrino), só não foi lançada como “Liverpool Sunset” por dois motivos: o lançamento da ode liverpudliana “Penny Lane” logo antes e Ray ter mudado de ideia, como explicou: “Eu quis compor uma canção sobre um pôr-do-Sol em Liverpool por causa da morte do Merseybeat [o pop-rock dançante de artistas dessa região como Gerry & The Pacemakers, Searchers, Beatles e tantos outros] e aquilo tudo. Então pensei, eu sou londrino, pra quê tanto tributo a Liverpool? Tenho verdadeira paixão por Londres, e essa canção era muito pessoal.” E Adoniran, nascido no interior paulista (em Valinhos, então ainda um distrito pertencente a Campinas) e radicado em Sampa desde os 22 anos, muito raramente cantou sobre outra cidade ou Estado: “Eu não posso falar em Copacabana, porque não a conheço, falo então da Sorocabana [Estrada de Ferro Sorocabana, rebatizada Ferrovias Paulistas S. A. (FEPASA) nos anos 1970 e extinta ao ser federalizada em 1998].”; “Eu fiquei conhecido mais por ser o primeiro a cantar São Paulo. Nem podia ser de outra forma. Afinal, cresci, vivo e quase não saio daqui. Se fizesse samba de outro lugar não dava, E nesse outro ponto, há um detalhe importante. Compor sobre o Rio de Janeiro, por exemplo, é muito fácil. O Rio é uma cidade muito bonita que inspira bastante, e tem vários lugares cujo nome já são [sic] meio samba, de tão sonoros, têm muita poesia. Quer ver? Jacarepaguá, Leblon, Grajau, Copacabana... Em São Paulo, nada disso. Alguém consegue encaixar Vila Alpina, Vila Nhocuné, Morumbi e Santo André [mais exatamente, um município da Grande São Paulo] em samba? Não dá, eu reconheço. Mas gosto tanto da cidade que acabo dando um jeito. Foi por isso que fiquei conhecido. Agora, para cantar São Paulo eu resolvi aproveitar tudo que a cidade oferecia. Então entram na letra gíria, ruas, bairros, muita coisa do cotidiano da cidade.

É claro que as temáticas das obras de Adoniran e Ray têm inspirado também muitas outras pessoas em várias épocas e países; sim, valem as famosas noções “canta tua aldeia e serás universal” e “os elementos são universais e as combinações são regionais” (além disso, muitos textos que leio sobre a vida suburbana em Londres me lembram a de São Paulo, só que em inglês). É óbvio que Ray, nascido em Londres em 1944, pegou um mundo diferente de Adoniran, paulista de 1910; a Londres de Ray já era velha usuária de aviões, metrô (desde 1863!), cinema, televisão (embora esta tenha sido suspensa durante a Segunda Guerra Mundial), Hollywood e Walt Disney. Mas não há muitas diferenças essenciais entre os cotidianos suburbanos cantados por Adoniran desde os anos 1950 e Ray a partir da década seguinte. E muitas coincidências entre as canções de ambos (até em melodias!) têm levantado minhas sobrancelhas; segue uma amostra.

Ray Davies em 2010
Adoniran Barbosa em 1955

Em “Véspera De Natal” (1974), tudo o que Adoniran tem a oferecer à família como ceia natalina é “bala mistura [...] também um pãozinho de mel”, e ao anti-herói de “Dead End Street” (1966) resta apenas “a Sunday joint of bread and honey”, traduzível como “um pão de mel do domingo”. Ainda sobre culinária, “Torresmo À Milanesa” (parceria com Carlinhos Vergueiro, 1980) e “Maximum Consumption” (1972) afirmam que a alimentação de pedreiros em obra e musicistas na estrada mata a fome mas não dá prazer gastronômico. A marcha carnavalesca “Garrafa Cheia” (parceria com Benedito Lobo e Raguinho, 1957) e o rock “Have Another Drink” (1975) enaltecem o álcool como lenitivo para os reveses da vida.

Tanto no samba “Mãe, Eu Juro!” (parceria com Noite Ilustrada, 1957) quanto no rock-foxtrote “Mirror Of Love” (1973), mulheres se queixam da brutalidade de maridos tóxicos – embora a protagonista da canção de Ray se mostre conformada, “você é um amante maldoso e indecente/mas eu nunca encontraria outro/mesmo me tratando mal/é o melhor homem que eu jamais tive”, e a de Adoniran deixe claro que procura escapar: “Mãe, eu juro/pela luz que me alumia/se eu continuar com ele/não me chamo mais Maria. O samba “As ‘Mariposa’” (1955) e o rock-calipso “Monica” (1968) aludem à prostituição feminina, embora Adoniran tenha sido sutil a ponto de negar ter tido essa intenção (ainda que “mariposa” já fosse apelido notório para as funcionárias das calçadas. E o homossexualismo masculino é tema da hoje obscura “O Legume Que Ele Quer” (parceria com Manezinho Araujo, 1956), “ele é o bonitão da cidade/é o tipo de homem/que nunca esperô por mulher/Imagine se ele podia esperá por você, Juraci,/Que não é/o legume que ele qué” (sim, equivale à expressão mais recente “ele não gosta da fruta” e tem assunto semelhante ao samba “Mulato Bamba” de Noel Rosa) e do megassucesso “Lola”, country-rock de 1970 (“não consigo entender/por que ela caminha como mulher e fala como homem [...] garotas serão rapazes e rapazes serão garotas/neste mundo confuso, bagunçado e chacoalhado [...] eu sei o que sou e estou feliz por ser homem, tal como Lola” (sim, o final é ambíguo: Lola é também feliz ou homem?).

“Saudosa Maloca” (1951) e “Scrapheap City” (1974) lamentam a demolição de belas casas antigas para construir grandes edifícios em nome do progresso. Analogamente, “Viaduto Santa Ifigênia” (1980) e “Come Dancing” (1983) evocam logradouros que poderiam ser, ou foram, reduzidos a boas lembranças. “Iracema” e “Big Black Smoke” falam de anti-heroínas se dando mal ao enfrentarem grandes cidades sem a cautela necessária.

A diversão popular de breves piqueniques em cidades próximas inspirou “Drivin’” (1969) e “O Caminhão Do Simão” (1974). Ainda sobre transportes, “Trem Das Onze” (1964) e “Gotta Get The First Plane Home” (1965) falam da urgência em seu uso (trem e avião) para ir ver pessoas queridas (respectivamente a mãe e a mulher amada). E o maxixe “Tocar Na Banda” (1965) e o rock-vaudeville “The Moneygoround” (1970) ironizam o geralmente baixo retorno financeiro da música: “Tocar na banda/pra ganhar o quê?/Duas mariolas/e um cigarro Yolanda” e “Ele [o empresário] deu metade [dos direitos autorais] a um editor estrangeiro/ele ficou com metade do dinheiro/ganho em algum país distante [...] e eu acabo com metade de sabe lá o quê”. (Outra coincidência: enquanto Adoniran canta sobre aceitar como cachê um cigarro que já não era mais fabricado, Ray canta em “Harry Rag”, de 1967, sobre o tabagismo levado a extremos: “Homem do imposto de renda, que Deus te abençoe/Alguma coisa tu até podes levar, mas não tudo/mas se acaso eu der tudo não ficarei triste/contanto que eu tenha o suficiente pra comprar um cigarro.”)


Ray Davies (o segundo à frente) num time organizado pelo jornal Melody Maker em 1967. O segundo em pé da direita para a esquerda é Dave Davies, irmão de Ray e guitarrista dos Kinks.


Adoniran Barbosa (o ultimo à frente) num time organizado pela Radio Record 
nos anos 1950. 

Quanto à coincidência de melodias ou de, pelo menos, sequências harmônicas, comparem, por exemplo, a segunda parte de “Sunny Afternoon”, de 1966 (“save me, save me...”), com a segunda de “Prova De Carinho”, parceria com Hervê Cordovil, de 1960 (“quantas serenatas eu tive que perder...”). Provavelmente Adoniran e Ray se inspiraram numa terceira fonte. Eu quase diria que Ray pode ter se inspirado em Adoniran, pois este teve canções regravadas no exterior antes de Ray (o cantor italiano Don Marino Barreto Jr. gravou “As ‘Mariposa’” e “Samba Do Arnesto” em 1957, e Ray só entraria para a “moneygoround” da indústria fonográfica em 1964). E tanto o brasileiro quanto o inglês são mestres da repetição com criatividade, nunca vendo problema em reciclar melodias e compor “irmãs gêmeas”; comparem, por exemplo, “Malvina” e ”Joga A Chave”; “Apaga O Fogo, Mané” e “Prova De Carinho”; “Come On Now” e “Everybody’s Gonna Be Happy”; “All Day And All Of The Night” e “Destroyer”.

Lembremos também que Adoniran e Ray fizeram sucesso na Itália com versões de suas canções em italiano. Sim, “Trem Das Onze” virou o megasucesso “Figlio Unico” com Riccardo Del Turco e o “Samba Italiano” foi copidescado por Leo Chiosso como “Che Tempo Fa, Gigi?”, e “versioni” de Ray Davies incluem “Te Giuro, È Cosi” (“You Really Got Me”) e “Un Figlio Del Fiori Non Pensa Al Domani” (“Death Of A Clown”). Outra semelhança/coincidência envolve os Kinks e os mais ilustres intérpretes de Adoniran, o grupo paulistano Demônios da Garoa, é que ambos usaram trombone em algumas gravações (“Iracema”, “Dead End Street”, “Mr. Pleasant”). E Adoniran, notório mestre do samba, compôs um rock, embora esquecível, “Vem, Amor” (1962, parceria com Geraldo Blota), enquanto o emérito roqueiro Ray compôs para os Kinks uma bossa nova, a no mínimo interessante “No Return”, de 1967. Outra curiosidade é Ray mencionar música brasileira numa canção (“dançámos o foxtrote e o samba, dançámos noite adentro” no fox “Holiday Romance”, 1975) e Adoniran elogiar diplomaticamente o rock em “Já Fui Uma Brasa”, parceria com Marcos César, de 1966 (“eu gosto dos meninos desses [sic] tal de iê-iê-iê/porque com eles canta a voz do povo”).

Desde os anos 1990 tenho regravado composições de ambos, inclusive participando de discos tributos como Do It Again: The Kink Kontroversy Kontinues e The Great Lost KPS Album (produzidos pelo fã-clube internacional Kinks Preservation Society) e Adoniran 100 Anos (Lua Discos, 2010). E, sendo eu tradutor, aprendi a valorizar versões bem-feitas de canções e procurar fazer as minhas próprias. De modo que, ao descobrir a identidade entre as obras de Adoniran e Ray, resolvi incorrer na “piada a sério” de versionar canções de ambos intercambiando as respectivas linguagens musicais, sempre mantendo as melodias originais, embora as re-harmonizando conforme necessário. Lancei no Soundcloud os primeiros resultados dessa experiência, transformando “Sunny Afternoon” no samba “LindaTarde, Lindo Sol”, “Apaga O Fogo, Mané” na balada kinkiana “Put Out The Fire,Manny” e “Prova De Carinho” no iê-iê-iê “A Token Of My Love” (ora passando por remixagem) – versões, vale lembrar, sempre fieis às letras originais, embora eu não veja problema algum em incluir atualizações relativas a meu tempo, como menções a celulares e internet. Aqui vão mais duas. “The Dartboard” é “Tiro Ao Álvaro” (parceria com Oswaldo Molles) no estilo de Nino & April, Jan & Dean, Everly Brothers e outros astros de pop-rock pré-Invasão Inglesa. E “Lola” virou um sambão que talvez, em regravação menos caseira, até faça sucesso.

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