LADO 1: O LIVRO
O historiador musical paulistano Ricardo Santhiago é um malvado no melhor sentido, a julgar por este livro que tenho em mãos, o recém-lançado A História Incompleta De Miriam Batucada (editora Popessuara). Malvado por dois motivos. Primeiro: o livro é tão bem pesquisado e escrito que, mesmo eu ocupado com mil coisas como tradutor e intérprete em cartórios e domicílios e músico em gravações e shows em locais como o Pará-Bahia, prazerosamente perdi sono e reduzi tempo de refeições para devorar as 370 páginas e escrever este texto o mais rápido que pude, três dias. Segundo motivo: acho que posso considerar este livro uma “biographie à clef” que incita a pesquisar para além dele; logo explicarei.
Este livro é indicado para dois tipos de pessoas: as que já conhecem a cantora, multi-instrumentista, compositora e humorista Miriam Batucada, que disputa com Adoniran Barbosa e Rita Lee o posto de artista mais representativa da cidade de São Paulo, e as que não conhecem, para as quais este livro é bom ponto de partida. Miriam é praticamente um personagem criado por Miriam Angela La Vecchia (1946/1994), paulistana entre as paulistanas: nascida e criada no bairro da Mooca, de ascendência italiana, com musicalidade até na fala, e senso de humor agridoce, daquele que extrai comédia de tragédia.
Famosa como sambista, Miriam foi versátil o suficiente para integrar o projeto Sociedade Da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão Das Dez de Raul Seixas, além de compor e gravar ritmos diversos incluindo xote, tango, foxtrote e até rock. Como intérprete, ajudou a revelar compositores como Renato Teixeira, Sérgio Sampaio, Celso Viafora e César Brunetti. Em palco, rádio e televisão, dividiu microfones com artistas como Paulinho da Viola, Marisa Gata Mansa, duas Célias (a cantora-solo e a dupla de cantoras gêmeas Célia & Celma), Grande Othelo, Lingua de Trapo, os Trapalhões (e até este que vos escreve, no meu programa Rádio Matraca e fora dele (Nota 1). Comediante, brilhou quando mulheres humoristas eram poucas. Musicista, inventou marcação de ritmo com as mãos e mostrou que mulheres podiam ir além de piano e pandeirolas. Além disso, foi uma das primeiras celebridades musicais brasileiras a se assumirem homossexuais (embora Miriam não se furtasse a romances com o verdadeiro sexo frágil). E Ricardo Santhiago detecta Rita Lee imitando Miriam no samba “Amor Branco E Preto” em seu último álbum com os Mutantes.
Tudo isso é apenas uma amostra do que fala este livro – além de “causos” como Miriam ter sido integrante de uma banda “ad hoc” (uma única aparição na TV) com Martinha (sim, o “Queijinho de Minas”) ao piano e Célia e Celma ao contrabaixo e à bateria) e revelações pessoais como a briga e reconciliação com Raul Seixas e suas reações ao ver a mãe pela última vez ou experimentar maconha uma única vez (mais detalhes no livro!). Esta história “incompleta”, porém muito informativa, traz ainda muitas ilustrações e uma boa discografia.
Ah, sim, por quê “biographie à clef”? É que meia dúzia de pessoas entrevistadas ou citadas (amigas/namoradas e um psicólogo picareta) aparecem sob pseudônimos. Um exemplo é a atriz que no livro atende por Tania Fernandes, “dotada de sensualidade e encanto notórios”, que “começara posando para fotonovelas popularescas” nos anos 1960 e chegou ao primeiro escalão da TV Globo.
LADO 2: O DISCO
Bem resumiu em A História Incompleta De Miriam Batucada a grande cantora Claudya Nota 3): “Fico pensando em como existem várias formas de se matar uma pessoa. Mata-se também pelo esquecimento, pela falta de humanidade, pelo não reconhecimento a seu trabalho, pela falta de solidariedade, pela falta de amor.” Ricardo Santhiago completa: “Há sempre uma Miriam Batucada sendo morta.”
Mas Santhiago faz sua parte para, parafraseando Alcione (sambista aliás citada numa composição de sua amiga Miriam), não deixar Miriam Batucada morrer. E não somente com o livro supracitado: simultaneamente a ele saiu o CD Infiel, Marginal E Artista – As Composições De Miriam Batucada (gravadora Astrolabio); reunindo 18 canções (Nota 2) compostas por Miriam (algumas com um parceiro e amigo de sempre, Renato Barbosa) em ritmos diversos e inéditas em seus discos, cada uma na voz de um/uma grande artista diferente, incluindo velhas amizades como Edy Star (companheiro de Miriam no projeto Kavernista) e Cidinha Campos (que sugeriu o nome artístico Miriam Batucada), veteranas como Aurea Martins, Maria Alcina e Cida Moreira, talentos mais novos como Zeca Baleiro, Ayrton Montarroyos, Graziela Medori, Blubell e Ceumar, além de Vânia Bastos, Paula Sanches, Silvia Machete, Leila Maria, Juliana Amaral e Vange Milliet - todos e todas cantando como se tivessem incorporado o espirito de Miriam. Ou melhor, incorporaram mesmo.
Os arranjos do disco são para banda (violão,
guitarra, baixo, bateria, teclados e ocasionais sopros e violoncelo) pequena e
eficiente, sem nostalgia por demais respeitosa nem modernices; certamente,
Miriam aprovaria – e, sendo ela autoproclamada “alma da festa”, não poderia ela
mesma faltar neste disco, em gravações de rascunhos que deixou em fitas
cassete, nas faixas de abertura e encerramento: a marchinha “Muito Bacana”,
provavelmente abertura para programa de rádio, e o soul-jovem-guarda “Ela”, com
instrumental novo sobre a voz à capela de Miriam. E, além de muito samba, o CD
tem muita variedade: o ragtime “Playboy”, o samba-rock “Bilhete Azul”, o
xote-xaxado-blues-rock “Nordestina Paulistana”, o samba-tango “Fui procurar Uma
Psicanalista”, um “Chorinho Brasileiro”, o foxtrote-sambão “Crooner De
Orquestra”, o samba-canção “Pra Nada”, o soul-iê-iê-iê “Ela”...
As letras são quase sempre bem humoradas ou irônicas, não apenas retratando a época em que foram compostas, os anos 1970 e 1980, mas soando atuais nos anos 2020, onde Miriam satiriza de tudo: a ditadura militar (bem sutilmente, “não gosto do novo regime... para emagrecer” em “Fui Procurar Um Psicanalista”), psicanálise (nessa mesma faixa), altos preços de alugueis (“Cobertura Na Bela Vista”), sexo (“Samba Do Orgasmo”), a vida em Sampa (“Nasci Em São Paulo”), modismos em música (“Nordestina Paulistana”), as limitações da classe média (“Prendas Do Lar”, “Bilhete Azul”), a arrogância infundada da classe alta (“Gente Fina é A Mesma Coisa”), conformismo (“O Robô (Viro Gente)”), homossexualismo masculino (“Playboy”, “Estrela Do Cabaré”)... Mais sérias e líricas são duas das últimas faixas, as românticas “Pra Nada” e “Ela”.
E todas as canções são totalmente inéditas, exceto “Bilhete Azul”, lançada em 1982 por Sonia Santos, e “Crooner De Orquestra”, nova versão de “Alma Da Festa”, faixa-título do último LP de Miriam, de 1991. O disco resgata Miriam no geral como artista e em particular como compositora, e o livro lembra que ela teve composições lançadas por artistas como a citada Sonia Santos, Emilinha Borba e o parceiro Renato Barbosa.
Enfim, conhecer o álbum Infiel, Marginal E Artista é quase como descobrir um álbum inédito de alguém como Chico Buarque, Frank Sinatra ou Beatles ou uma obra obscura de Beethoven ou Gershwin e, melhor ainda, perceber que tais obras estavam inéditas não por baixa qualidade e sim azar mesmo. (Nota 4)
Espero que esta dupla livro-e-disco seja um bom começo para uma reedição de toda a obra de Miriam. Por ora, só faltou um DVD ou um documentário (isso se não estiver a caminho) para completar a lembrança de Miriam Batucada na ocasião dos 30 anos de sua morte – evento que ela já havia ironizado logo em seu primeiro disco, lá em 1967, no samba “Batucando Na Mão” de Renato Teixeira: “O doutor até já disse/que a minha doença é sambice/que mata do coração/mas nada disso interessa/pois que morte vai ser essa/se eu vou fazer batucada/na tampa do meu caixão...”
Notas:
(1)
No
livro coletivo Vamos Falar Da Mooca?
(editora Matarazzo, 2016) narrei “causos”, reproduzidos neste livro de
Santhiago, sobre minhas andanças com Miriam Batucada desde que a conheci, em
1986, até uma canja que demos num barzinho de Pinheiros poucos dias antes de
ela falecer. Por sinal, o time desta banda “ad hoc” foram o guitarrista
Washington Espindola, eu ao contrabaixo e Ronaldo Castelo Jr. à bateria – sim,
o mesmo do Patrulha do Espaço, que também poderia ganhar a vida tocando samba.
(2)
Notem
a fuga ao limite de 14 faixas imposto pelo que resta das grandes gravadoras
brasileiras.
(1) O texto de Claudya (do qual reproduzi apenas um trecho) não foi escrito especialmente para este livro, mas bem poderia ter sido. E, como bem resumiu Santhiago, Claudya participou do livro sem querer, mas sua filha Grazi Medori está no disco propositalmente, cantando "Gente Fina É A Mesma Coisa". Claudya e Grazi são uma versão feminina de Bobi Pai e Bobi Filho, mãe e filha companheironas uma da outra, e sou fã de ambas.
(4) Aqui vai um comentário bem pessoal; vocês podem não concordar, mas eu posso dizer. Acho possível uma analogia entre Miriam Batucada e The Zombies, uma de minhas bandas inglesas de rock preferidas, não tanto em termos de conteúdo, mais de trajetória artística. Ambas são importantes em seus respectivos gêneros, MPB eclética e rock proto-progressivo; ao contrário do normal, ambas “começaram do alto e desceram”, surgindo com grande sucesso, mas em seguida desaparecendo até se tornarem artistas de culto; e ambas gravaram poucos discos. Miriam abafou a banca já em sua primeira aparição na TV; em 1966, mas seu sucesso foi diminuindo por uma combinação de resistência de gravadoras e emissoras e sua própria quase constante recusa a concessões – inclusive procurando não se valer de sensualidade feminina – e temperamento bipolar (embora só reconhecido como tal anos mais tarde), excêntrico e inquieto. Se parece absurdo comparar uma cantora de MPB com uma banda inglesa de rock, lembro que o rock sofreu influência da MPB e vice-versa – até mesmo fora do Brasil, graças ao sucesso mundial do baião e da bossa nova - e que boa parte da obra de Miriam é musicalmente rica o bastante para interessar a quem perceber que rock progressivo vai muito além daqueles temas que tentam contar a história do Universo em 40 minutos e confundem elaboração com enrolação. Algumas gravações de Miriam têm muito de rock, como “Chorinho Inconsequente”, que reúne guitarra distorcida a metais de gafieira e cordas no estilo de Franck Pourcel; “Estrela Do Cabaré”, um brega com citação da “Ave Maria” de Bach; “Nordestina Paulistana” é um xote-rock-xaxado. Como afirmei, não acho absurda esta minha comparação; afinal de contas, ninguém reclama de o Pink Floyd ser chamado de banda de rock progressivo só por cobrir baladas folk-rock com mil efeitos sonoros... Por sinal, este disco inclui um pouco de efeitos sonoros, graças a Deus e ao grande multiinstrumentista Tata Aeroplano, na abertura do samba de breque “Complexo Da Cabeleira”.
Olá queridos, parabéns pela matéria. O Ricardo é um querido amigo e escreveu também um livro com 13 cantoras negras, fala com ele desse livro também? Obrigada.
ReplyDeleteOlá! Sim, sei que Ricardo tem outros livros, ainda não os tenho mas pretendo ter! Abração.
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