Neste aniversário da cidade de São Paulo, resolvi homenagear a ela e também a uma ilustre pessoa paulistana que, infelizmente, não alcançou esta data: a jornalista, editora e poetisa Thais Matarazzo, também emérita pesquisadora e memorialista de musica e cultura brasileiras e portuguesas e dona da Editora Matarazzo. Tive a honra e prazer de participar de muitos livros desta editora, inclusive Vamos Falar De São Paulo II?, lançado em 2016; segue abaixo meu texto para este livro - este, aliás, merece ser lido inteiro e procurado na editora ou em sebos.
Lançamentos em textos e gravações, pesquisas, estudos e novidades em geral produzidas ou descobertas por Ayrton Mugnaini Jr., jornalista, compositor, escritor, tradutor, pesquisador de música popular e, sim, poeta. Sobre os arquivos sonoros: só quero compartilhar o que descubro ao longo de décadas. Mas se você é a(o) artista ou beneficiária (o) de alguma destas gravações e se sentir prejudicada(o), é só me pedir e retirá-la-ei.
Wednesday, January 25, 2023
SÃO PAULO: BEM MAIS QUALIDADES QUE DEFEITOS
SÃO PAULO: BEM MAIS QUALIDADES QUE DEFEITOS
Por Ayrton Mugnaini Jr.
Vou começar confessando: amo São Paulo e nela ter nascido – mas nem sempre a amei. Dos 12 aos 22 anos morei nas menores e mais tranquilas Sorocaba e Lins, e desenvolvi uma antipatia pela metrópole: eu me queixava de muita poluição, trânsito sempre parado (ainda não havia metrô nem corredores de ônibus e veículos viviam trombando com dinossauros – sim, havia até um tipo de ônibus enorme apelidado de “dinossauro”)... Quando minha família retornou a Sampa em 1979, resisti o quanto pude, inclusive indo todo fim de semana a Sorocaba para tocar com bandas que eu havia formado. Até que em 1980 acabei me enturmando com pessoas de Sampa, passei no exame para jornalismo da Cásper Líbero, e voltei a ser paulistano de vez, embora falando e pensando com sotaque do “interiorrr”. E desde então me identifico sempre com a última cena do filme O Cangaceiro de Lima Barreto: “Nasci aqui, vou morrer aqui, esta é a terra do meu sertão!” (A autora deste e outros diálogos do filme é a grande escritora cearense Rachel de Queiroz, que logo voltará à nossa conversa.)
Sim, Sampa não é cidade para corações fracos, mas quem não gosta e quiser gostar acaba se acostumando e gostando. Basta lembrarmos duas homenagens musicais do tipo “morde-e-assopra” de pessoas “estrangeiras” sobre a cidade, com alguns comentários meus. Uma é “São São Paulo” (ou “São Paulo, Meu Amor”) do baiano Tom Zé, composta em 1968:
São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor
São oito milhões de habitantes (1)
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito
São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor
Salvai-nos por caridade
Pecadoras invadiram
Todo o Centro da cidade
Armadas de rouge e batom
Dando vivas ao bom humor
Num atentado contra o pudor
A família protegida
Um palavrão reprimido
Um pregador que condena
Uma bomba por quinzena (2)
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito
São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor
Santo Antonio foi demitido
Por ministros de Cupido
Armados da eletrônica
Casam pela TV
Crescem flores de concreto
Céu aberto ninguém vê
Em Brasília é veraneio
No Rio é banho de mar
O país todo de férias
E aqui é só trabalhar
Porém, com todo defeito,
Te carrego no meu peito
São, São Paulo, meu amor
São, São Paulo, quanta dor
(1) 8 milhões de pessoas já era muita gente – um décimo da população brasileira – em 1968, imaginem os 12 milhões de 2016...
(2) A censura obrigou Tom Zé a substituir “bomba” por “festival”, mas na gravação ainda se ouve um coro dizendo “bum!”
E em 1971 o cantor e compositor carioca Marcus Pitter fez sucesso com o charleston-rock “Esta Cidade É Um Monstro”, de sua autoria:
Há vinte e poucos anos
Eu nasci neste lugar (1)
São Paulo, minha terra,
Meu chão, meu lar
Aqui eu nasci,
Me criei e cresci
E ao passar do tempo
Pouco a pouco me perdi
Multidão, poluição, construções,
Jatos cortando o espaço sem fim
Multidão, poluição, construções
A Natureza já morreu aqui
Esta cidade é um monstro
Mesmo assim, gosto daqui
(1) Tudo bem, o carioca Marcus Pitter tem licença poética para dizer em letra de música que nasceu em Sampa, do mesmo modo que o ítalo-paulista Mário Zan compôs “Sou Gaúcho”...
E por falar em licença, peço-a para trazer uma letra de canção de uma pessoa paulistana – por sinal que eu mesmo, e esta canção foi lançada em 2004. A gravação pode ser ouvida aqui, e a letra segue abaixo:
NÓS QUE AMAMOS SÃO PAULO
Ayrton Mugnaini Jr.
Eu me lembro da infância que passei
Lá no bairro de Santana
Um dia eu cresci, mas antes me casei
Mudei pra Vila Mariana
Hoje moro na Vila Prudente
Cada bairro de São Paulo
É uma cidade diferente
Mas eu sempre dou um jeito
A cidade inteira cabe
No lado esquerdo do meu peito
Dizem que esta cidade é um mundo
De tão imensa e multiforme
Mas eu penso diferente, que o mundo
É uma São Paulo enorme
Esta cidade é um gigante, um Frankenstein (1)
De concreto, ferro e sangue
Nem direi mais o que tem
Pelo que ela tem de mau eu até choro
Mas pelo que tem de bom
É nela mesmo onde eu moro
Eu já morei em mil bairros diferentes
Mas o lugar onde eu mais vivo
Não é em Santana ou Vila Prudente
É nos pontos de coletivo
Ainda tem muito problema, é verdade,
Mas nós que batalhamos
E amamos esta cidade
Podemos dizer sem medo e sem pausa:
Se em São Paulo dá pra viver
É também por nossa causa
(1) Licença poética até para mim mesmo: eu sei que Frankenstein não é o nome daquele Borba Gato estrangeiro e sim do cientista que o criou, mas tudo bem.
São Paulo até que não se sai mal para uma cidade que tanto cresceu em tão pouco tempo (“a cidade que mais cresce no mundo”). Em 1916 todo o Estado de São Paulo contava 3,3 milhões de almas, e a capital não ia muito além do Pátio do Colégio. O Brasil praticamente se limitava ao Rio de Janeiro e à Bahia, o resto era interior, e o “Estado Bandeirante” era pouco mais que um corredor para transporte do ouro vindo de Minas Gerais e um quintalzão ótimo para se plantar café... Realmente, se o Rio de Janeiro é nossa Princesinha, nossa “Cinderela”, São Paulo se revelou bom exemplo de “Patinho Feio”.
Mas já naquele tempo São Paulo se afigurava como uma boa opção para se viver melhor neste Brasil. Um bom exemplo é o romance O Quinze de Rachel de Queiroz, publicado em 1930, sobre a grande seca que assolou o sertão nordestino em 1915, e o personagem Chico Bento decide se mudar para São Paulo: “Lá não tem sezão, nem boto, nem jacaré... É uma terra rica, sadia... [...] Terra de dinheiro, de café, cheia de marinheiro...”
Sem dúvida, boa parte do crescimento e diversidade de São Paulo deve-se à grande imigração de gentes de todas as partes do Brasil e do mundo, tal como aconteceu com sua irmã Nova Iorque – e com a bisavó Roma. Bem resumiu Mário de Andrade em 1926: “São Paulo é capaz de se apropriar de tudo o que as tendências, movimentos e invenções estrangeiras podem dar para riqueza e liberdade da gente.” E eu gosto tanto desta “terra do meu sertão” que até contribuí com um grande paulistano, meu filho Ivo.
Maior população italiana fora da Itália, idem japonesa fora do Japão, primeira cidade brasileira adotar códigos de endereçamento postal (sim, CEP) e de discagem telefônica direta à distância (DDD), primeira a ter bilhete único para transporte e órgão governamental especialmente para saberes e atividades circenses (o Centro de Memória do Circo)... E sempre há o que se dizer de uma cidade como São Paulo ,Sampa, Pauliceia, a Terra da Garoa... Após começar confessando, termino sentenciando: São Paulo me parece estar de acordo com o que sempre digo: “Cultiva tuas qualidades de modo que teus defeitos nem contem.”
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