Ouvistes o
que foi dito: "Não se julga livro ou disco pela capa". Certo, mas uma
embalagem bonita e funcional não machuca ninguém, pelo contrário, valoriza o
produto em todos os sentidos. O desenvolvido capitalismo ianque e europeu
aceita e estimula até empresas especializadas em capas de discos, como as
saudosas Hipgnosis e Pacific Eye & Ear. Da América do Sul, este que vos
escreve não se lembra de empresas ou de artistas individuais especializados (as)
em capas de discos, mas sim de pessoas artistas gráficas, ilustradoras e caricaturistas
que brilharam nesse serviço, como o argentino Juan Gatti e, no Brasil, Miécio
Caffé, Lan, Juarez Machado, Cesar Villela na gravadora Elenco, Joselito na
Musidisc e na RCA, Tebaldo, Aldo Luiz, Oscar Paolillo, Cafi e... Elifas
Andreato, autor de muitas capas de livros, cartazes, cenários e figurinos de
peças e shows, fascículos e, o que nos interessa agora, capas de discos, cerca
de trezentas.
PONDO BANCA
Infelizmente
falecido agora em 29 de março de infarto aos 76 anos, o ilustre paranaense Elifas
Vicente Andreato teve o melhor tipo de fama: muita gente conhece e admira sua obra sem saber que é
dele. Na música brasileira esse momento tem até data, 8 de junho de 1970,
quando o Brasil realmente amanheceu mudado para melhor (1): nesse dia estreou
nas bancas de revistas a coleção de fascículos & discos História da Música
Popular Brasileira da editora Abril, projeto sem precedentes e com poucos
iguais em termos de pesquisa, popularização e acabamento gráfico e técnico (2).
Elifas está nos créditos, parte das mais importantes e das menos lidas...
Esta coleção foi um dos grandes marcos da estreia de Elifas como diretor de arte da Abril Cultural, divisão de fascículos da Abril. (3) E ele marca presença no livro que estou escrevendo sobre a Disney e a música brasileira graças a outro seu trabalho na Abril: a coleção Estorinhas De Walt Disney (4), lançada em janeiro do mesmo ano.
PALHAÇOS E LÁGRIMAS
Na música popular costumam ser lembradas as categorias de intérprete e, não muito em seguida, a de compositor (a). Nos anos 1980 acenderam-se merecidos holofotes para duas outras importantes categorias da indústria cultural: a pessoa arranjadora e a autora de capas de discos – mas por um lado negativo. Explicarei. Ao lado de grandes como Radamés Gnattali, Rogério Duprat e Miguel Cidras, um nome começou a ser citado como exemplo do que arranjadores não deveriam ser. Sim, ele mesmo, Lincoln Olivetti (1954/2015), sem dúvida competente e talentoso, mas, de tão requisitado, passou a se repetir, tornando-se o artista brasileiro mais formulaico depois do imbatível Roberto Carlos. (5) Pois aconteceu o mesmo com Elifas, embora, felizmente, por muito menos tempo, em menor grau e mantendo boa qualidade.
“Homem étudo palhaço”, proclama um blogue carioca de
humor feminista. Artista musical também? Elifas Andreato marca ilustre presença
em outro livro que estou escrevendo, sobre a música brasileira e o circo, pois
muitas de suas capas, cenários e figurinos têm inspiração circense, mas em
várias delas ele demonstrou tendência a transformar todo e toda artista em palhaço
triste. “Os palhaços sempre me fascinaram, talvez porque eu os veja como a
ideia mais bem acabada do artista, agentes da esperança, capazes de expressar a
felicidade do homem num instante, no momento”, resumiu Elifas. Esta fase lhe inspirou boas capas – mas com uma repetição aquém da alta
média de sua obra. Senão, vejamos.
Em 1975 Roberto Moura, jornalista d’O Pasquim, elogiou a capa do álbum desse ano (sem título e que inclui “Amor À Natureza”) de Paulinho da Viola nestes termos: “uma apresentação tão sóbria quanto era possível a Elifas Andreato”. Sete anos depois, Moura esculhambou o show Mel de Maria Bethânia: “A direção de Wally Salomão inexiste. A regência [no jornal saiu “agência”] de Perinho Albuquerque é constrangedora [...] arranjos redundantes e banais. Não escapam sequer os cenários de Elifas Andreato, em seu pior momento.” E em 1980 Moura, com seu belo nome de colírio elogiando o que lhe faz bem ao olhar, resume como “magnífica” a capa do LP de Adoniran desse ano, ressaltando que tal detalhe contribui para este ser o álbum mais elaborado do Poeta do Bixiga e de toda Sampa.
A Folha de S. Paulo chegou a afirmar que o pior disco de música brasileira seria de Fagner interpretando canções de Gonzaguinha – outro artista que tardou a ser valorizado – com arranjos de Lincoln Olivetti e capa de Elifas. Uma gozação mais afetuosa está no único LP do saudoso humorista e músico Serginho Leite (1955/2011) (sem título, lançado pela Som Livre em maio de 1984), na faixa “Salsa Pra Ilha”, onde Serginho encarna o personagem Billy Gomez, cantor ansioso por sucesso mas, não sabendo o que quer, se submete às gravadoras que também não sabem mas pensam saber (ouça essa faixa e, melhor ainda, o disco todo aqui):
Sou artista
importante
Tenho
gravadora multinacional
Sou de nível
internacional
Fui vaiado
num festival
Já fiz disco
em Los Angeles
Capa do
Elifas, Tárik gostou
FM me
boicotou
Meu trabalho não emplacou (6)
Outra sátira às capas de Elifas é Brincando Com Fogo do Língua de Trapo, de 1992; por sinal, esta capa, idealizada por Cassiano Roda e desenhada por Rodval Matias, é grande exemplo de sátira bem-feita a ponto de funcionar como arte, chegando a ser eleita a melhor capa brasileira do ano pela revista Bizz.
Eu mesmo cheguei a fazer uma piada com as capas de Elifas – inédita até este momento. Meu segundo lançamento musical, a fita cassete Brega Segundo Brega, lançada em outubro de 1985, é o único a não ter ficha técnica nem créditos de autoria. É que tudo isso iria sair num luxuoso encarte (luxuoso por meus padrões) que acabou não saindo... Uma das faixas, “Os Metaleiros Também Amam”, foi a inspiradora desta sátira não somente a Elifas mas também ao heavy-metal, que também se tornava gênero formulaico graças a tantos imitadores de Iron Maiden e Motorhead. Notem as cerifas nas letras... E percebe-se que antecipei a banda Massacration em quase 20 anos. (7)
Mas quase em
seguida, em 1986, este galhofeiro elogiou bem humoradamente Elifas na revista
Somtrês, ao comentar positivamente o álbum Dezembros de Maria Bethânia: “Elifas
Andreato prova aos desavisados que não vive só de boneca morta e palhaço
chorando.” Realmente, um artista como Elifas não se mede por uma parte de sua
obra, e a música brasileira tem muitas boas capas que “nem parecem de Elifas”;
aí vai uma amostra.
BASTAM DOIS RISCOS NUMA FOLHA QUALQUER
Até meados dos
anos 1970 a CBS tinha como grande orgulho ser a mais brega das grandes
gravadoras brasileiras, especialmente nas capas, sem encartes e quase sempre
simplonas, “tudo pobreza”, como resumiu Ezequiel Neves; impossível imaginar a
CBS investindo em artistas gráficos como Elifas, mas com o tempo isso
aconteceu, após a transformação da gravadora em Sony Music no fim dos anos 1980,
cujos lançamentos incluíram Martinho Da Vida (1990), Moleques De Rua (1992) e uma
bela série de CDs, Escolas de Samba/Enredos, de 1994, cujas capas couberam a
Elifas.
“Tudo pobreza”? Pois bem, a competência e criatividade de artistas como Elifas Andreato não dependem de verba ou espaço. Basta lembrarmos dois exemplos extremos, por coincidência ambos de cantoras. Um é o álbum Lápis De Cor de Fátima Guedes (EMI, abril de 1980), de produção apurada, sendo inclusive a primeira capa de disco em todo o mundo encadernada com espiral, imitando caderno escolar (8). O outro é a singela mas bonita e eficiente capa do primeiro disco de Vânia Bastos (Copacabana, novembro de 1986), tão-somente uma bela foto na frente – a fotogenia e simpatia de Vânia ajudam muito e até bastam – e as letras e ficha técnica atrás. Sim, a qualidade de uma capa de disco não depende de ela ser dupla ou quíntupla, incluir dez pôsteres e envelopes, luzinhas coloridas ou outros, como se diz, disfarces para encobrir música que não tenha a mesma qualidade.
UM RECADO NA PORTA: EU E ELIFAS
Falei da presença de Elifas em livros que estou escrevendo. Pois bem, o mestre marca ilustre presença num livro que já escrevi: Adoniran – Dá Licença De Contar, lançado pela Editora 34 em 2002; entrevistei-o rapidamente sobre sua capa para o álbum Adoniran E Convidados. (9) E posso dizer que estou num disco que tem capa de Elifas: Um Conto Que Virou Canto, de corais infanto-juvenis com regência de Thelma Chan, lançado de forma independente em 1991 e onde me revelei para o público infanto-juvenil, participando como músico e compositor e lançando meus quase-sucessos “Isto É Samba” e “Nanico”. (10)
ALGUNS DETALHES FINAIS
Há pelo menos dois livros sobre Elifas, belas flores que ele recebeu em vida. Uma, aliás, ele mesmo plantou, o autobiográfico Impressões (Bamerindus, 1993); o outro é Vai, DJ! O Intrigante Caso Dos Discos Perdidos, de João Rocha Rodrigues (Palavrinhas, 2021), que inclusive pode ser lido aqui .
Notemos que Elifas era tão criativo que suas capas nada ou quase perdiam na transição para formatos de tamanhos menores que LPs, como fita cassete e CD; algumas até já nasceram pequenas e notáveis neste formato, como a supramencionada (gostaram?) série dedicada a sambas-enredos.
E notem que,
para ressaltar neste artigo a produtividade e criatividade de Elifas, mostrei
apenas uma capa de cada artista...
(1)
Houve quem louvasse como uma data dessas o
lançamento da caixa Ensaio Geral de Gilberto Gil (8 de março de 1999), projeto bem-vindo
e grandioso, mas ainda refém de vícios da gravadora brasileira, omitindo
algumas faixas devido ao limite draconiano brasileiro de 14 faixas por CD.
(2) Os fascículos tinham páginas coloridas e os LPs, de dez polegadas,
traziam oito a dez faixas, a preço de lançamento de sete cruzeiros, preço mais
que excelente; um compacto duplo sem encarte algum custava cerca de seis...
(3) Elifas participa também da segunda edição do projeto, Nova História da Música
Popular Brasileira, lançada em 14 de setembro de 1976.
(4) Esta coleção voltou às bancas em dezembro de 1974 com nome gramaticalmente
mais correto, Historinhas de Walt Disney (não “Estorinhas”).
(5) Lincoln Olivetti tem sido louvado por revisionistas como “papa do
sacolejo” e “mago do pop”... Pois é, depois de 20 anos tudo fica bom e após três
décadas tudo se perdoa.
(6) Sim, a letra no encarte do LP cita o grande jornalista Tárik de Souza
(embora na gravação Serginho cite outro emérito batalhador pela música
brasileira na imprensa, Mauricio Kubrusly), e a faixa começa com uma das muitas
vinhetas do disco que satirizam João Gilberto.
(7) Foi nesta fita que, além de “Os Metaleiros Também Amam”, lancei meus
quase-sucessos “Marcinha Ligou”, “Abdômen De Presidente”, “Galinhagem” e
“Noites Sob O Luar”.
(8) Elifas, tão esperto quanto criativo, patenteou a ideia de capa de discos
com espiral, e tenho em mãos o outro único exemplo que conheço: o álbum triplo
Cartas Celestes do pianista Fernando Lopes, lançado pela Eldorado em 1982 e
cujos créditos incluem “Fechamento espiral: Elifas Andreato”. Realmente, uma
criação muito mais prática que o "Discobjeto" do álbum Transa de Caetano Veloso –
que, por sinal, recebeu de Elifas uma de suas melhores capas, a do LP Bicho.
(9) O álbum foi lançado sem título, mas algumas reedições o chamam de
Adoniran E Convidados.
(10) O disco inclui ainda outra canção minha, o menos lembrado mas por mim também querido “Samba Da Paquera”. E cabe aqui um grande alerta: este disco teve reedições em CD com faixas a menos e até sem a capa de Elifas...
Show! Parabéns pelo trabalho ����������
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